O publicitário Jhonatan De Martine, mais conhecido como Joe, se considera uma pessoa "muito ativa". Pratica esportes, faz atividade física regularmente, segue acompanhamento médico com check-ups periódicos. Assim, foi uma surpresa quando descobriu uma miocardite e soube que precisaria de um transplante de coração aos 29 anos, em fevereiro de 2022.
Sua história começa um pouco antes, em janeiro daquele ano. "Eu comecei a sentir umas dores de barriga muito fortes, pontadas na boca do estômago e eu não conseguia fazer nada. Não conseguia andar muito, tinha que parar porque eu começava a perder o fôlego", inicia Joe, como é mais conhecido, em entrevista ao Terra.
Atento à saúde, ele procurou assistência médica no Hospital Nove de Julho, em São Paulo. Por lá, fizeram exames gástricos que não identificaram nada e veio a sugestão de que o problema deveria se tratar de uma gastrite.
Joe foi medicado, recebeu alta e até melhorou, mas quatro dias depois voltou ao hospital com mal-estar: mais dores no estômago e, dessa vez, também dificuldade para respirar.
Também não era Covid-19, contudo, sua oxigenação estava baixa, então Joe foi encaminhado para um setor de prioridade. Depois, a equipe médica fez um ecocardiograma que detectou apenas 13% de fração de ejeção (FE) — índice que mede a porcentagem de batimentos do coração.
"Eles ficaram assustados porque eu não devia nem estar conseguindo ficar em pé". Diante do resultado, ele foi direto para a UTI, quando enfim descobriram a miocardite, nome dado à inflamação do tecido muscular do coração, que deveria ter ocorrido há "pelo menos seis meses".
A avaliação é de que o problema não foi descoberto antes porque o publicitário não apresentava sinais típicos, como dor no peito, palpitações e inchaço dos membros inferiores. Segundo o cardiologista Bruno Biselli, que acompanha o caso do publicitário, a doença costuma despertar sintomas logo no início e evolui com o tempo.
“Normalmente, o que a gente vê é que o paciente tem um problema no coração, descobre por sinais e sintomas de insuficiência cardíaca, começa o tratamento com medicações orais. A maioria dos pacientes acaba melhorando alguma coisa e permanece em tempo estável ambulatorial. Depois de alguns anos é que esses pacientes acabam piorando e aí experimentam múltiplas internações até chegar numa fase avançada”, esclarece Biselli, especialista em Insuficiência Cardíaca e Transplante Cardíaco, ao Terra.
Com Joe, no entanto, a causa da miocardite até hoje é desconhecida. "O coração inchou e perdeu muita força por ter cicatrizado inflamado, então não tinha mais o que fazer", pontua o jovem.
Todas as alternativas
Com isso, as equipes tentaram recuperar o coração com o uso de terapias medicamentosas. Isso durou entre duas a três semanas, período em que Joe melhorou e saiu da UTI. Mas depois ele piorou e precisou voltar à unidade intensiva.
Foi quando uma das médicas indicou que ele precisava ser transferido para o Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas, também em São Paulo, pois seu quadro clínico provavelmente demandaria um transplante. A transferência ocorreu em 25 de fevereiro, quase um mês após sua internação no Nove de Julho.
Na unidade especializada, Joe foi submetido a uma série de exames para entrar na fila por um novo coração. Durante a espera, outros tratamentos foram adotados, como o uso de medicamentos intravenosos para a insuficiência cardíaca e o implante de um balão intra-aórtico.
"Isso me ajudou muito, fez com que eu ganhasse uma qualidade de vida muito boa. Antes, eu não estava conseguindo comer porque o meu estômago, que é o motivo pelo qual eu tinha as dores iniciais, já não recebia mais sangue suficiente pra fazer a digestão. Ele já não estava mais sendo considerado um órgão prioritário do corpo, porque o corpo precisava mandar sangue para outros lugares, como o cérebro, pulmão, etc".
Joe só não fez ECMO, sigla traduzida como Oxigenação por Membrana Extracorpórea, terapia que ganhou notoriedade em meio à pandemia de Covid-19. Uma das personalidades que recorreram à técnica foi o ator e humorista Paulo Gustavo, que não resistiu às complicações do coronavírus.
Sensação de dormência
Joe entrou na fila do transplante no início de março e viveu uma espera de cerca de um mês e meio até que lhe encontrassem um coração. O período foi tão "difícil" e "frustrante" que ele acredita ter se dissociado do processo.
Minha mãe está na lista de transplante de rim há tempos. E aí, de repente, o filho dela estava numa situação pior que a dela, precisando de um transplante mais urgente que o dela
"Eu sou ansioso. Desde criança eu sou uma pessoa diagnosticada com transtorno de ansiedade. Ali, naquela situação, nem ansioso eu conseguia ficar. Era uma sensação de dormência, a única coisa que eu podia fazer era rezar", destaca, ao falar sobre a angústia com a sensação de impotência.
Assim, Joe se agarrou à fé. Umbandista, ele se manteve com suas guias e orou por sua recuperação, um complemento a todo o atendimento multidisciplinar que recebeu no Incor.
"Eu estava rezando pela minha vida e pela morte de alguém"
A fila para o coração funciona de forma diferente das demais. A compatibilidade entre doador e receptor, claro, ainda é um requisito. Mas o critério principal é a prioridade, que segue de acordo com a gravidade dos casos.
Por isso, como foi internado diretamente na UTI, Joe entrou na escala 3 de 4 prioridades. O médico Bruno Biselli explica a ordem:
- Grupo 1: pacientes que usam algum suporte circulatório ou bomba que supra toda a função do coração, como a ECMO;
- Grupo 2: pacientes que usam balão intra-aórtico para auxiliar os batimentos do coração;
- Grupo 3: pacientes que estão internados, com uso de medicação inotrópica para manter o funcionamento do coração;
- Grupo 4: pacientes que são tratados em casa, sem necessidade de internação.
Antes no grupo intermediário, Joe "passou na frente de quase todo mundo" e foi para o segundo grau da lista quando precisou do balão intra-aórtico. Apesar disso, alguns corações foram recusados por sua equipe médica.
"Sempre algo acontecia. Uma vez, o paciente tinha Covid, acharam melhor não transplantar. Outra vez, parecia tudo bem, mas quando abriram a pessoa pra tirar o órgão viram que o coração não estava bem", lembra Joe.
Seu cardiologista reforça que isso realmente ocorre, “com alguma frequência”, quando a equipe de transplante vai captar o órgão doado. Enquanto isso, Joe esperava.
É um processo muito doloroso, eu estava rezando pela minha vida, mas eu também estava rezando pela morte de alguém, são coisas que mexem muito com a sua cabeça
Também por pensamentos como esse, Joe destaca o quão grato é pela equipe multidisciplinar que o acompanhou no hospital — dos médicos aos psicólogos, assistentes sociais, nutricionistas e funcionários de serviços gerais que lhe davam assistência. Todos eles, somados à sua fé, serviram de suporte emocional até o dia 12 de abril, quando encontraram um coração compatível.
Seguiu-se o protocolo de colher amostra de sangue para a fenotipagem — como o apresentador Fausto Silva, que recebeu um transplante de coração em agosto, o tipo sanguíneo de Joe é B+ —, e o jovem foi preparado para a cirurgia. Em poucas horas, Joe estava de coração novo.
Recuperação sem parâmetros
Se a miocardite que desencadeou a insuficiência cardíaca foi atípica, o mesmo pode ser dito sobre a recuperação de Joe. Em cinco dias, ele deixou a UTI e, em duas semanas, teve alta do hospital — isso geralmente só ocorre em um mês, confirma Biselli.
Outros avanços: no terceiro dia pós-cirurgia, o publicitário já se alimentava com comida sólida e caminhava pelo hospital. "Eu não sou parâmetro, tive uma recuperação muito rápida", reconhece. Para os médicos, isso se deve ao estilo de vida que Joe mantinha anteriormente, com alimentação saudável e prática regular de atividade física.
Por ser transplantado, Joe vai tomar imunossupressores duas vezes ao dia para sempre ou, como prefere dizer, "até um tratamento melhor aparecer". Com isso, sua imunidade fica comprometida, o que ele não encara como um martírio. Pelo contrário, o publicitário segue à risca as orientações para se manter bem.
"Eu, como imunossuprimido, tenho que usar máscara sempre [em transporte público, por exemplo]. Preciso cuidar da minha alimentação, fazer atividade física, pois isso ajuda a diminuir as chances de rejeição do coração. Preciso evitar lugares cheios, o que é muito difícil especialmente sendo jovem, mas, pra mim, é sobre escolher suas batalhas".
Sua solução é evitar festas, o que não o transformou em um antissocial. Joe destaca que trabalha, mantém amigos e namora, como qualquer pessoa de 30 anos. Para ele, a mudança, "muito mais de conscientização sobre como pensar a própria vida", foi até para melhor.
A vida média de um paciente com transplante de coração é de 12 anos. Eu não quero ter uma data de vencimento
Essa média é extraída de um banco de dados internacional, pondera Biselli. Ou seja, leva-se em consideração uma população muito heterogênea. Além do mais, com o avanço da ciência, a estimativa de sobrevida com transplante tem aumentado. Para pacientes que sobrevivem ao primeiro ano de transplante, a média de sobrevida sobe para 14 anos. "Quanto mais jovem e com menos comorbidades, mais chances desse indivíduo sobreviver", explica.
No caso de Joe, a expectativa é de que ele precise de um segundo coração no futuro, já que o órgão transplantado tem menor tempo de vida. Com sede de viver, ele não teme o procedimento. "Eu já passei por isso, vi que não é o fim do mundo".
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Como ser doador de órgãos e tecidos
Há cinco tipos de órgãos que podem ser doados: coração, pâncreas, pulmão, fígado e rim. No sistema nacional, são feitos também transplantes de intestino, multivisceral (troca de múltiplos órgãos abdominais) córnea e medula óssea.
Para doar qualquer órgão, a primeira coisa a fazer é avisar a família. Isso porque, no Brasil, a doação de órgãos e tecidos de pessoas mortas só é realizada mediante consentimento familiar, portanto cabe aos parentes conceder ou não esse aval.
Em caso de doador vivo, que pode disponibilizar um dos rins, parte do fígado, da medula ou dos pulmões, o sistema brasileiro permite que a doação seja feita a familiares. Quando doador e receptor não são parentes, é exigida uma autorização judicial, a fim de evitar que haja conflito de interesses ou coação.
Mudanças na lei
O Brasil ostenta os títulos de segundo maior transplantador do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, e de país com o maior sistema público de transplantes. O número de doadores, no entanto, poderia ser maior se considerado o tamanho da população.
Números do Ministério da Saúde atualizados nesta terça-feira (26) apontam que há 40.511 pessoas na fila de espera por um transplante de órgãos. A espera maior é por um rim — são 37.298 pessoas atualmente, entre elas a mãe de Joe.
A fila do coração, em que ele estava ano passado e Faustão integrou este ano, tem hoje 391 pacientes. São dados que reforçam a necessidade de campanhas para informar e incentivar a doação de órgãos. Agora ativista da causa, Joe colabora com o Incor sempre que pode e divulga iniciativas em apoio aos transplantes.
Além disso, o contraste entre o número de pacientes nas listas e o número de doadores também reforçam pleitos por mudanças na legislação. Motivado pela história do pai, o filho de Faustão, João Guilherme Silva, foi ao Congresso Nacional no início do mês para tentar sensibilizar deputados e senadores.
Ele defende a regra de doação presumida na qual todo cidadão (quando morto) será um doador, a menos que se pronuncie contrariamente em vida. Essa é a regra vigente na Espanha, país que é referência em transplantes.