Apesar das conquistas, até 2021 Caio Bogos não estava nada confortável. Aos 26 anos, ele havia atingido um objetivo que traçara para si quando ainda era adolescente: o de lançar um negócio de impacto social. Estamos falando da aTip, startup que funciona como um hub que conecta profissionais neurodivergentes a empresas com programa de diversidade e inclusão.
Neurodivergentes são aqueles que possuem alterações no funcionamento cognitivo, comportamental, neurológico e neuro atômico, segundo o instituto Autismo e Realidade. O grupo engloba Transtorno do Espectro Autista (TEA), Transtorno de Déficit de Atenção (TDAH), Síndrome de Tourette, dislexia, esquizofrenia, entre outros. O plano da aTip, que foi criada quando Caio estava na faculdade e participou do hackathon Autismo Tech, era, nos primeiros anos, focar em pessoas com TEA, expandindo o alcance na sequência.
A ideia de negócio era ótima, uma vez que a grande maioria das ofertas para o público autista, até então, era voltada para crianças - como se adultos com TEA não existissem ou não tivessem suas próprias dores e habilidades. Os potenciais clientes, por sua vez, começavam a responder positivamente. A missão da empresa, isso ninguém seria capaz de negar, era no mínimo nobre. Mas Caio se afligia por, como CEO e fundador da aTip, ser a voz de uma comunidade à qual não pertencia. Se sentia um impostor. Até que tudo mudou.
Um mergulho na neurodivergência
Para ser mais exata, as coisas continuaram as mesmas. O que mudou foi o entendimento de Caio sobre si próprio.
Ao mergulhar no universo da neurodivergência, Caio notou que as características de pessoas com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade explicavam muito as dificuldades que ele próprio vivenciava em seu dia a dia. Liderando a aTip há quase três anos, sentia-se consumido pelo cansaço, com alta dificuldade de concentração e uma forte tendência à procrastinação. Decidiu por uma avaliação neuropsicológica. No começo de 2022, três anos depois de criar a aTip, descobriu-se uma pessoa autista.
"Eu não sou e nem tenho a pretensão de ser representação de algo. Eu inclusive não gosto muito dessa ideia. Mas a descoberta me deixou mais confortável em falar e foi muito importante, porque trouxe mais força para aTip", contou Caio em entrevista concedida ao Vale do Suplício em 2022, logo após 18/06, Dia do Orgulho Autista, no qual escreveu um texto no LinkedIn contando sua recém-descoberta.
O diagnóstico justificou seu jeito introvertido e algumas dificuldades de abstração; explicou por que ele fica mais extenuado que seus sócios quando há uma longa sequência de reuniões e, também, esclareceu sua dificuldade em exposições sociais. O ajudou, enfim, a compreender seus limites - e acima de tudo, a respeitá-los. "Eu nunca deixei de ser uma pessoa autista. Eu só me descobri agora [2022]. Com essa descoberta, muitas coisas do meu passado fizeram sentido."
Entre as coisas do passado que fizeram sentido estavam, exatamente, as que a aTIp endereça. Uma delas era a angústia que Caio enfrentava em processos seletivos. "Eu nunca passei nos testes de fit cultural, com perguntas extensas e pouco objetivas. Toda a barreira começa com um simples formulário." Não saber todas as etapas do processo e não ter retorno, principalmente o negativo, eleva o nível de ansiedade em qualquer um - e esse sentimento é exacerbado entre os neurodivergentes, tornando o processo ainda mais penoso. E mesmo que a pessoa autista, com TDAH ou outra diversidade cognitiva transponha essa barreira inicial, a integração à rotina corporativa é outra súplica - que a aTip, felizmente, chega para apoiar.
Por que incluir
Estima-se que haja 2 milhões de autistas no Brasil. O espectro do transtorno varia de 1 a 3, migrando do menor para o maior número conforme o grau de suporte que a pessoa demanda em sua vida social. Indivíduos de grau de suporte 1 tendem à independência, enquanto aqueles que orbitam no grau 3 necessitam apoio quase que total para as atividades básicas, como comer, tomar banho e se vestir.
São dois os motivos que geralmente fazem uma empresa criar um programa de inclusão para neurodivergentes: responsabilidade social e/ou vantagem estratégica e de inovação. Sim, vantagem estratégica. Mas não caia você naquela vala comum de imaginar que o motivador seria a ideia estereotipada de que pessoas autistas, por exemplo, são prodígios das ciências exatas ou de outra área do conhecimento.
"Estamos falando de profissionais com talentos - nem piores, nem melhores. A mensagem final é que as empresas enxerguem a diversidade e inclusão como uma vantagem estratégica. Cada vez mais pessoas vão ser diagnosticadas ou como pessoas autistas ou como pessoas dentro do TDAH e não porque pessoas estão nascendo mais com essas características, mas porque o volume de informações está crescendo. E a empresa precisa estar preparada para isso."
(*) Adriele Marchesini é jornalista especializada em TI, negócios e Saúde com quase 20 anos de experiência. Depois de passar por redações de veículos como Estadão, Infomoney, ITWeb e CRN Brasil, cofundou as agências essense e Lightkeeper, as quais já ajudaram mais de 80 empresas na construção de conteúdo narrativo multiplataforma para negócios. É cofundadora do Unbox Project e coâncora do podcast Vale do Suplício. Criado pelas jornalistas Adriele Marchesini e Silvia Noara Paladino, o podcast Vale do Suplício nasceu como uma contracultura aos empreendedores de palco - os típicos CEOs de MEI, escritores de textões no LinkedIn - para contar a história de empreendedores que falam pouco, mas fazem muito. Ouça no Spotify.