"Isolamento social na favela soa como piada. São 200 mil habitantes que vivem juntos. São dez casas amontoadas em uma mesma viela, uma em cima da outra. Tem cubículo de três, quatro metros que vivem seis, sete pessoas. Vai isolar como?". O questionamento é feito por Marcivan Barreto, morador de Heliópolis há mais de 30 anos e presidente da Central Única das Favelas (Cufa) do Estado de São Paulo.
A família de Marcivan foi uma das primeiras a chegar no que é hoje a maior favela da capital paulista. No final da década de 1970, o pai e a mãe fugiram da seca do sertão nordestino e desceram para o sudeste buscar o sustento dos nove filhos. O líder comunitário viu o local se tornar uma cidade nas últimas décadas e agora luta para manter a população viva.
Do início da pandemia do novo coronavírus até agora, ele ajudou a distribuir cesta básica e kits de higiene para mais de 4.500 famílias da comunidade onde vive. A maior parte das entregas é feita pessoalmente para evitar que as pessoas saiam de casa. E chegar até a porta de cada um não é tarefa fácil. A viela estreita, as escadas construídas no improviso, os puxadinhos uns sobre os outros tornam a tarefa de Marcivan ainda mais complicada.
"Tenho trabalhado de domingo a domingo sem parar. Perdi peso nesses últimos meses", contou Marcivan que coordena o trabalho social em 250 favelas na região metropolitana de São Paulo. Para receber as doações, a família precisa estar no banco de dados da Cufa - o cadastro é feito pelo telefone e pelo site da organização. A preocupação principal está em ajudar quem precisa e fazer a informação correta chegar na população local.
Por isso, todos que trabalham na entrega das doações passaram por um curso com enfermeiros para aprender a usar os equipamentos de proteção e também a manusear alimentos, higienizar. No dia em que doaram cerca de mil botijões na comunidade, dividiram a entrega em dois períodos em um campo de futebol, com demarcação para que as pessoas respeitassem o distanciamento.
Para Marcivan é impensável cogitar flexibilizar a quarentena neste momento. "O governo em São Paulo está falando em reabertura. É absurdo. O Estado não chega aqui na favela para ver. A única ação do Estado aqui é coercitiva, com a polícia. Converso com diferentes lideranças. Estão todos preocupados. O governo fala em reabertura e as pessoas aqui acham que está tudo bem. Nosso papel é conscientizar as famílias para a gravidade do problema que estamos enfrentando."
Samba, rap e funk
Uma das iniciativas de Marcivan foi convocar artistas populares do samba, rap e funk e pedir para que enviassem áudios alertando para o problema do novo coronavírus. Ele está terminando a edição das vinhetas com cantores como Dodô, do grupo Pixote, Ndee Naldinho e Mc Kevin. A intenção é na próxima semana sair com carro de som pela comunidade. "São 65 mil famílias que vivem aqui. A epidemia chegou agora na favela. Na região do Ipiranga houve 110 óbitos, 60 só em Heliópolis. É preocupante."
A população em Heliópolis, segundo Marcivan, ainda não está levando a doença a sério. Os mais jovens continuam saindo à noite e organizando festas nas ruas, o chamado Fluxo. "Tem muita gente levando na brincadeira. As pessoas aqui só acordam quando morre parente."
Assim como qualquer pessoa informada sobre o vírus, Marcivan tem medo. Ele vive em Heliópolis com a esposa e duas das três filhas - a mais velha mora sozinha. Durante a conversa, se emocionou ao comentar o quanto é duro rejeitar o pedido diário da caçula de ficar em casa. Para quem viu Heliópolis nascer da ajuda comunitária, de um desconhecido ajudar o outro a construir sua moradia por se ver na mesma situação, a saída para se livrar do vírus vai ser a mesma de sempre.
"Vai ser com união. Assim como meu pai, muitos vieram do nordeste em busca de uma vida melhor aqui. Heliópolis é sinônimo de resistência. Da cavalaria derrubar o barroco do Seu João num dia e no dia seguinte a Dona Maria que morava lá longe vir para ajudar a construir. E é assim que vamos nos livrar dessa epidemia, com um ajudando o outro a se manter vivo."