Mulheres com síndrome da fadiga crônica sofrem preconceito no trabalho e na vida social

Doença que causa cansaço extremo acomete três vezes mais mulheres e pode ser associada a infecções virais

24 mai 2024 - 06h25
Resumo
A pedagoga Laura Silva adquiriu a síndrome da fadiga crônica, também conhecida como encefalomielite miálgica (EM/SFC). Existem indícios de que sua condição se relaciona à pandemia de covid-19. Seu diagnóstico foi complicado devido à falta de informação e à estigmatização causada pela própria comunidade médica.
Foto: Freepik

A pedagoga Laura Silva, de 47 anos, tinha uma vida normal até dezembro de 2021, quando pegou Covid-19. Desde então, sua saúde nunca mais foi a mesma. Sintomas como cansaço extremo, dificuldade de concentração, intolerância aos esforços cotidianos e sonolência excessiva se tornaram comuns na rotina. A fadiga, que começou no quarto dia de sintomas, persistiu. Seis meses depois de ter testado positivo para Covid-19, a pedagoga recebeu o diagnóstico de encefalomielite miálgica, também conhecida como síndrome da fadiga crônica (EM/SFC), uma doença ainda pouco diagnosticada.

No Brasil, o Ministério da Saúde não tem dados sobre quantas pessoas convivem com a síndrome, embora um estudo do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), divulgado na revista Frontiers in Immunology em 2022, relacione a doença com a pandemia. Os pesquisadores mostraram que a condição era observada em cerca de 10% a 20% das pessoas que se curaram da covid-19, mas continuavam com sintomas. Dos 80 pacientes participantes da pesquisa da USP que tiveram covid-19, metade desenvolveu a síndrome da fadiga crônica. No ano passado, um estudo divulgado pela mesma publicação estimou que 13% a 45% dos pacientes que contraíram o vírus podem desenvolver a doença. 

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Até chegar ao reconhecimento da sua condição, Laura Silva enfrentou situações constrangedoras no trabalho, preconceito e diagnósticos incorretos, que associavam seus sintomas à depressão e ansiedade. “Os médicos diziam que era para tomar remédio, fazer atividade física e seguir a vida”, lembra. “Eu tenho dificuldade enorme de ficar em pé parada e sentada com as pernas para baixo. Em uma reunião importante, por exemplo, tive que ficar isolada do grupo, sentada com as pernas para cima. Antes de eu ser afastada do trabalho, pensavam que isso fosse alguma ‘mania’ minha”, diz. 

A síndrome da fadiga crônica é uma doença ainda sem cura. Os sintomas aparecem, em mais de 80% dos casos, depois de uma infecção viral, sendo três vezes mais comum na população do sexo feminino. Outro dado alarmante é que 91% das pessoas afetadas nos Estados Unidos são diagnosticadas erroneamente com outras condições, como depressão. 

A falta de informação tem exposto pacientes à estigmatização tanto no mercado de trabalho quanto na vida pessoal. É comum que os sintomas sejam minimizados ou relacionados com questões psicológicas. 

A professora da disciplina de pneumologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Eloara Campos explica que muitos pacientes com a síndrome acabam recebendo diagnósticos de depressão e ansiedade. “Até porque não tem como um paciente com uma doença crônica não desenvolver um pouco de ansiedade ou depressão. Às vezes ansiedade é uma consequência, porque a pessoa já passou tantos anos atrás de médicos, especialistas, exames e nunca teve uma resposta..”

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Campos começou a estudar a doença com afinco durante a pandemia de covid-19, após ter recebido pacientes que melhoraram dos sintomas respiratórios e das queixas pulmonares, mas se mantinham com fadiga. A professora da Unifesp explica que cerca de 25% dos pacientes com a síndrome estão acamados e 50% não conseguem mais ter uma vida laboral e social como antes; muitos, inclusive, param de trabalhar. 

Além de não ter cura, a doença não tem um marcador biológico que ateste sua existência, como um exame de glicose que diz se a pessoa está diabética, por exemplo. A ausência desse marcador dificulta processos de trabalho como afastamento e aposentadoria. O diagnóstico é clínico: mais de três meses sentindo cansaço que não melhora com descanso, piora dos sintomas após esforços mínimos e um sono não reparador. 

Laura Silva conta que trabalhou se sentindo mal por cinco meses, porque os médicos acreditavam que seus sintomas piorariam caso ela ficasse em casa. Quando precisou se afastar das atividades, foi tratada com desconfiança na perícia do INSS. “A primeira perícia foi terrível. O perito ficava repetindo: ‘Os exames não deram nada? Nenhuma alteração?’. Depois, no relatório da perícia, vi que ele mentiu dizendo que me avaliou e que subi na maca com desenvoltura, mas eu não me levantei da cadeira”, diz. “Em vez de o médico ouvir e tentar construir uma hipótese, ele tenta te encaixar nas caixinhas que ele já sabe; aí, quando não cabe, ele vai te espremer até caber lá dentro”, conta.

Projeto de lei quer criar política nacional 

A fotógrafa Ivana Andrade, 34 anos, deixou a profissão em 2014, porque demandava muito do corpo. Seus sintomas começaram ainda na adolescência, aos 12 anos: “Eu sentia muito cansaço na região do tronco, no pescoço, mas ainda conseguia realizar minhas atividades do dia a dia”, lembra. Na época, os médicos disseram que Ivana tinha depressão e ansiedade e, até os 24 anos, ela foi medicada como se estivesse com essas doenças. Até que os sintomas pioraram. 

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A jovem ficou quatro meses de cama, até que uma neurologista diagnosticou a síndrome da fadiga crônica. No caso dela, a causa pode ter sido o vírus Epstein-Barr, que é relacionado à mononucleose. Em 2014, 12 anos após ter frequentado consultórios, Andrade desistiu de buscar ajuda profissional e seguiu com a medicação que já tomava. “Não tinha condições de ir ao médico para levar desaforo, então, resolvi ficar pesquisando e divulgando a doença”, disse. Na sua conta no Instagram, ela publica momentos de encontros com políticos, em busca de respostas do poder público que possam amparar pessoas com a síndrome. 

A Lei nº14.705/23 estabelece diretrizes para o atendimento prestado pelo SUS às pessoas com Síndrome de Fibromialgia ou Fadiga Crônica. O texto determina, por exemplo, acesso à “atendimento multidisciplinar por equipe composta por profissionais das áreas de medicina, psicologia, nutrição e fisioterapia”. Mas não inclui aspectos com seguridade social. 

O Projeto de Lei nº2.812/21 é mais amplo. Ele prevê a criação de uma política de assistência aos portadores da síndrome e também “benefícios de auxílio-doença e/ou aposentadoria por invalidez e isenção do período de carência”. O projeto, de autoria da deputada federal Erika Kokay (PT-DF), foi articulado com ajuda de Ivana Andrade e de outros pacientes. Ele ainda aguarda parecer da Comissão de Saúde na Câmara dos Deputados desde junho do ano passado. A aprovação do projeto, segundo Kokay, ajudará a definir “protocolos e diretrizes para o tratamento e permitirá a celebração de parcerias e convênios, promovendo campanhas e instituindo um sistema de informações integrado para uma melhor compreensão sobre as especificidades da encefalomielite miálgica.”

Andrade também ajudou a desenvolver outra proposição como o PL 121/22, em Goiás. Em São Paulo, o PL 233/2022 tenta estabelecer políticas estaduais de atenção às pessoas com a síndrome. Os dois ainda estão em tramitação. 

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Enquanto seus direitos não avançam no Legislativo, ela afirma que as limitações da doença a colocam em uma situação de dependência financeira. A fotógrafa conta com o apoio da mãe para se manter. “Desde que larguei o trabalho, não consegui mais uma renda para me sustentar.”

Ela se formou em psicologia no final de 2023, mudou-se para São Paulo para tentar um projeto de mestrado na Unifesp. Além das perdas financeiras e profissionais, ela enfrenta o peso da discriminação na vida social, inclusive o término difícil de um relacionamento amoroso de dois anos. “Existe um afastamento das pessoas, porque a gente vive em um modelo de sociedade que estar na rua influencia muito nossos vínculos.”

Após ter recebido o diagnóstico e tentado trabalhar com várias limitações, a fonoaudióloga Denise Dornelas, 54 anos, precisou ficar afastada de seu trabalho por três anos, mas não chegou a dar entrada no INSS, porque achou que seria difícil acessar o benefício, já que seus diagnósticos eram complexos de serem compreendidos. Por fim, ela conseguiu uma licença-saúde da prefeitura onde é concursada. Durante esse tempo, precisou parar de atender seus pacientes particulares e vendeu o consultório.

Os primeiros sintomas da síndrome da fadiga crônica apareceram em 2016, depois de uma dengue. Foram dois anos até o diagnóstico correto e muitos tratamentos errados para doenças psiquiátricas. “Eu sempre acreditei nos meus pacientes, cuidei, estudei muito, porque sempre lidei com casos mais complexos. Quando chegou a minha vez, não foi o que aconteceu. O mais difícil foi estar doente e ter que pesquisar para mim”, contou emocionada.

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Segundo a fonoaudióloga, sua própria família tentou interditá-la judicialmente, depois de muitos anos de ida a médicos e sem uma cura. Para tentar mudar a opinião da família, ela buscou ajuda de um psiquiatra de sua confiança, com intuito de que ele atestasse sua sanidade. Mas aconteceu o contrário: ele perguntou se poderia ligar para sua família para explicar seu caso e ela autorizou. Ao chegar em casa, soube que ele havia dito que ela tinha um transtorno de personalidade. “Me senti traída. Hoje eu penso que eu tenho um pouco de depressão, porque são oito anos em busca de tratamentos, mas naquela época, apesar de tudo, eu me sentia bem emocionalmente.”

Durante entrevista à Agência Pública, deitada, assim como as outras entrevistadas, Dornelas contou que nos primeiros anos vivia dopada de remédios psiquiátricos e que teve hipervitaminose de tantos suplementos que os médicos passavam. “Eu me lembro que minhas mãos ficaram muito amarelas de tanta vitamina que me mandaram tomar”, lembra. Em paralelo à encefalomielite miálgica, a fonoaudióloga lidou com outros problemas de saúde. Assim como Laura Silva e Ivana Andrade, ela também teve o diagnóstico de Síndrome postural ortostática taquicardizante (Spot), um tipo de disautonomia que causa dificuldade de ficar em pé, taquicardia, sensação de desmaio, extremidades frias, fadiga, fotofobia, entre outros sintomas.

Ela morava sozinha com o filho, mas em 2018 precisou voltar a morar com a mãe e o pai, por questões de saúde e financeiras. “Eu vendi meu carro, meu consultório, fiz empréstimo para cuidar da minha saúde e precisei retornar para a casa da minha família.” Além de todo preconceito e traumas sociais que já sofreu pela falta de informação da população sobre a doença, a fonoaudióloga conta que o despreparo em termos de acessibilidade e capacitismo influencia na perda de momentos importantes como a festa de formatura do filho neste ano.

“Eu consegui ir à colação de grau, mas mesmo assim, como era em outra cidade, isso me desgastou. Assim que cheguei, procurei logo um sofá vazio que estava no evento. As pessoas me olharam com cara feia, dizendo que o sofá era lugar de se sentar e não deitar, mas eu estava passando mal. Quando chegou o dia da festa, eu não consegui ir, mas depois comemoramos aqui em casa.” 

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Enquanto se prepara para a aposentadoria, no segundo semestre do ano, Denise Dornelas conta como cada pequena tarefa do dia a dia termina sendo um grande esforço para ela. “Eu não consigo fazer mais nada. Eu passo o final de semana deitada para conseguir trabalhar de segunda a sexta por oito horas por dia. Depois que eu me aposentar desse emprego que sou concursada, vou trabalhar meio período em projetos pessoais, como um curso que quero ministrar para profissionais que atendem crianças com dificuldade de aprendizagem e uma série de animação com músicas e personagens infantis que estimulam o desenvolvimento da linguagem”, conta.

Fonte: Agência Pública

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