Por que pessoas que emagrecem ficam viciadas em outra coisa?

Alguns pacientes com transtornos alimentares podem, ao emagrecer, trocar a compulsão alimentar por vícios em drogas, bebidas, jogos etc.

1 jan 2024 - 06h20
Foto: Adobe Stock

A dica clássica para emagrecer é ‘fechar a boca’ – embora nesse conselho resida pouco de verdade com muito de exagero. Na premissa básica para perder peso, está uma fórmula matemática, em que se deve ingerir menos calorias do que o corpo gasta, mas os seres humanos são feitos de pensamentos, células, neurônios e hormônios que complicam a equação. 

Por esse motivo, um grupo de pessoas acima do peso e que sofrem com os chamados transtornos alimentares precisam ser acompanhados porque, acredite se quiser, há um desequilíbrio mais profundo nessa história – e não estamos falando de células inchadas. 

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“Dificilmente uma pessoa que tenha compulsão alimentar associada à ansiedade ou algum distúrbio psiquiátrico, ou que tenha compulsão alimentar periódica, que é um transtorno alimentar, tem um peso dentro da normalidade. Essas pessoas geralmente têm peso acima da normalidade, mas o emagrecimento, que normalmente não é o único foco no tratamento, é uma consequência. Então a perda de peso saudável acontece em virtude de um tratamento adequado, mas esse não é o único foco do tratamento da compulsão alimentar”, explica a médica nutróloga Marcella Garcez, diretora e professora da Associação Brasileira de Nutrologia (ABRAN). 

É preciso fazer um acompanhamento

Esses pacientes precisam de um tratamento e acompanhamento multidisciplinar para evitar o que é chamado de 'transferência de vício' ou vício cruzado. 

“Alguns pacientes com transtornos alimentares podem, ao emagrecer, trocar a compulsão em comida por vícios em drogas, bebidas, jogos, esportes (em excesso), compras e até transtornos com consequências dermatológicas como cutucar a pele e arrancar fios de cabelo. Isso ocorre, pois o emagrecimento com dietas está tratando apenas a consequência, que é o excesso de peso, e não a causa, que muitas vezes é proveniente de um desequilíbrio hormonal e/ou psicológico”, acrescenta a endocrinologista Deborah Beranger, que tem pós-graduação em Endocrinologia e Metabologia pela Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro (SCMRJ).

Um dos expoentes desse debate é o ator americano Josh Peck, mais conhecido por seu papel em “Drake & Josh”, da Nickelodeon. Em uma entrevista em um podcast, ele discutiu a pressão de crescer com a fama como um adolescente “obeso mórbido” e a troca de dependência quando emagreceu, abusando de drogas e álcool. “É como se o paciente buscasse outra fonte de prazer”, diz Marcella.

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Fuga emocional

Segundo as médicas, pessoas também podem desenvolver vícios após uma perda significativa de peso e tudo isso serve como uma fuga emocional das mudanças esmagadoras no estilo de vida associadas à perda de peso. 

“A compensação está principalmente associada a pessoas que se submetem a cirurgia para perda de peso, como bypass gástrico ou gastrectomia vertical, porque os procedimentos levam a uma redução drástica da ingestão de alimentos e do peso corporal durante um período de tempo relativamente curto”, explica. 

No entanto, os especialistas dizem que isso também pode acontecer após a perda natural de peso e, potencialmente, após a perda de peso por meio de medicamentos como o Ozempic, principalmente se não houver um acompanhamento médico durante o tratamento. 

“Sempre que as pessoas passam por uma grande mudança em seu corpo, há uma mudança psicológica que corresponde a isso e nem sempre é a mudança positiva que as pessoas imaginam que será. Quando perdemos muito peso, às vezes isso acontece muito rapidamente e muitas vezes de uma forma que parece fora do controle das pessoas”, comenta Marcella.

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Por que a transferência do vício acontece

Semelhante à experiência do ator americano, muitas pessoas presumem que um corpo mais magro é a resposta para seus problemas.

“Mas sem tratar a causa subjacente de uma compulsão existente, alguns correm o risco de substituí-lo por um vício potencialmente mais perigoso”, destaca a médica nutróloga. 

“É por isso que, geralmente, o tratamento de um transtorno alimentar é feito em equipe multidisciplinar, associando às vezes dois ou mais médicos (nutrólogos, psiquiatras, endocrinologistas) e outros profissionais da área da saúde, como nutricionista, psicólogo, educador físico, para que a pessoa tenha um tratamento completo, identificando todos os gatilhos que levam à compulsão alimentar e evitando que esses episódios aconteçam ou eventualmente tratem a ansiedade, a depressão ou o distúrbio psiquiátrico que leva à compulsão alimentar”, detalha Marcella.

A endocrinologista Deborah lembra que, para muitos, a comida é uma grande fonte de prazer – em alguns casos a única. 

“Quando comemos nosso cérebro libera substâncias químicas de prazer, e por esse motivo nos sentimos bem. Já foi demonstrado que as drogas e o álcool, por exemplo, desencadeiam respostas de recompensa no cérebro semelhantes às dos alimentos, o que ajuda a explicar por que algumas pessoas se tornam viciadas em substâncias quando não conseguem mais receber satisfação com sua dieta. Se por algum motivo, esse paciente não tiver um acompanhamento psicológico, ele pode experimentar a transferência de vício”, conta a endocrinologista. 

“Além disso, a intoxicação acontece mais rapidamente e com menos álcool após uma cirurgia para perda de peso, aumentando os riscos de dependência de álcool. Como a tolerância é reduzida, as pessoas podem experimentar os aspectos gratificantes do consumo de álcool mais cedo e com mais frequência, o que pode levar a um desejo maior de consumir mais”, argumenta Deborah Beranger.

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A dependência apenas muda de lugar

A transferência de dependência após perda rápida e significativa de peso pode ocorrer mesmo para aqueles sem histórico prévio de dependência, seja em alimentos, drogas, álcool ou outra substância ou comportamento. 

“Alguns pacientes chegam a criar dependência, por exemplo, de atividades físicas. O que pode parecer saudável em um primeiro momento, dependendo da quantidade de treinos realizados (e muitas vezes são vários durante o dia), pode acarretar em um problema de overtraining e fadiga”, explica Deborah. 

“Em 2021, um estudo apontou que pacientes com maiores níveis de grelina, o hormônio da fome, tendem a ter mais comportamentos impulsivos, inclusive ligados às questões monetárias. Eles preferiam uma recompensa imediata, mas menor, indicando um comportamento impulsivo. Então também pode acontecer de alguns pacientes terem um vício em apostas e em jogos”, afirma a médica nutróloga Marcella Garcez.

Dependência alimentar é um transtorno?

A comunidade médica ainda não reconheceu a dependência alimentar como um transtorno. O conceito de dependência alimentar é controverso e realmente só é visto no contexto de dieta e restrição da ingestão de alimentos – quanto mais as pessoas tentam restringir a sua alimentação, mais descontroladas se sentem em relação à comida.

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 Este debate tornou difícil para os pesquisadores compreenderem e comunicarem os fatores de risco para a transferência do vício após a perda de peso. 

“A melhor maneira de evitar totalmente o fenômeno é trabalhar juntamente com um profissional de saúde mental, de preferência um que seja treinado para tratar vícios e distúrbios alimentares, antes, durante e depois de sua jornada para perder peso. A equipe multidisciplinar dará o tratamento necessário para evitar problemas adicionais ao paciente”, finaliza Marcella.

(*) HOMEWORK inspira transformação no mundo do trabalho, nos negócios, na sociedade. É criação da Compasso, agência de conteúdo e conexão.

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