Valentina ainda não tem 3 anos, é uma menina ativa e adora brincar e se divertir numa rede. Nestes dias de quarentena forçada da família, sem poder descer para brincar no prédio onde moram, os pais dela, empresário Murillo Barcellos Lopes, de 38 anos, e Jesiane, de 34, decidiram transformar a sacada do apartamento em zona de distração para a filha - e armaram a rede. Se arrependeram. Valentina caiu da rede e bateu a cabeça no piso duro. Teve de ir para o hospital.
"Agora ela está bem", contou Jesiane Nunes de Souza ao jornal O Estado de S. Paulo. Ela explicou que costuma usar almofadas no chão para proteção da filha. "Desta vez não tinha almofada e ela caiu feio", disse a mãe. Diante da restrição imposta pelo afastamento social em vigor em São Paulo, o casal ficou em dúvida sobre sair de casa para levar a menina ao hospital. Mas com o ferimento atrás da cabeça de Valentina, correram para o pronto-socorro que fica próximo da residência da família, na região oeste de São Paulo.
"A médica que nos atendeu contou que há vários casos de crianças se machucando em casa nestes dias de quarentena", relatou Jesiane, um dia depois do atendimento da filha. "Ela agora está bem, mas ficou com um 'galo' enorme na cabeça", diz. "Ficamos preocupados com a batida. Rede, agora, só com muitas almofadas embaixo e com a gente observando", afirmou.
Acidentes domésticos como o de Valentina são perigosos e anualmente provocam até mortes, além das interfaces e sequelas na população infantil. De acordo com Eduarda Marsili, da ONG Criança Segura, os pais devem ter cuidados extras nestes dias de quarentena em casa, onde as crianças não têm para onde ir e suas ações são limitadas pelo espaço dos cômodos. O número de crianças que sofrem acidentes domésticos passa dos 110 mil por ano, segundo levantamento da ONG feito ano passado. Eduarda afirmou que um dos principais motivos de atendimento hospitalar nestes casos é por queimaduras. "Foram 20.761 casos de queimaduras em 2019." Ela disse que ainda é cedo para avaliar a extensão do problema em um mês de crise do novo coronavírus em São Paulo, com as crianças fora das escolas e em tempo integral dentro de casa. Mas que a estatística feita com dados do DATASUS mostra que nos últimos 10 anos "acidentes domésticos foram a principal causa de morte de crianças de 1 a 14 anos no Brasil."
Dados da ONG apontam ainda que "cerca de 3,6 mil crianças dessa faixa etária morreram e que 221 mil foram hospitalizadas devido a acidentes de queimaduras". Os custos chegaram a R$ 195 milhões com as internações. "No contexto de quarentena que vivemos, as crianças estão passando mais tempo dentro de casa - o que naturalmente aumenta as chances de acidentes", acredita a analista de gestão de projetos da ONG. "Com as crianças em casa o tempo todo, tendo acesso ao álcool líquido 70%, caso aconteça algum acidente, os pais ou responsáveis encontrarão os hospitais sobrecarregados de pacientes diagnosticados ou com suspeita do novo coronavírus."
Eduarda não esconde que sua maior preocupação é mesmo com acidentes envolvendo queimaduras. "Estamos muito preocupados com a liberação do álcool etílico 70% pela Anvisa", disse a gestora, criticando a liberação para limpeza por causa da pandemia da covid-19. "Esse tipo de álcool estava proibido desde 2002. É uma substância de combustão rápida e deve ficar longe das crianças." Eduarda acredita que o recomendável nas famílias nestes dias de confinamento é o hábito, recomendado pelos médicos, de lavar as mãos com água e sabão. Ela alertou ainda para o perigo do álcool em gel. "São substâncias que devem ser mantidas fora do alcance das crianças."
Outra causa de internações de crianças nos hospitais é o afogamento. Os registros no passado chamam a atenção para isso. "Mas não acontece somente em piscinas", diz. A ONG lembrou que um balde "com dois dedos e meio de água", por exemplo, é suficiente para acidentes com os pequenos. Crianças na faixa de 0 a 4 anos costumam ter a cabeça mais pesada do que o corpo, o que as leva a frequentes quedas.
A especialista lembrou que nestes dias de afastamento das crianças das demais atividades recreativas conjuntas ou das escolas, os brinquedos também devem ser vistoriados. Boa parte dos acidentes infantis por sufocamento, por exemplo, ressaltou em levantamentos passados devido à inalação de partes ou peças menores de brinquedos. A ONG Criança Segura passa aos leitores do Estado algumas dicas para os pais nesse período:
- Cabe aos adultos a manutenção de um ambiente seguro para as crianças
- Supervisão constante por um adulto
- Uso de equipamentos, como cadeirinha no carro e coletes de proteção
- Mudança no ambiente caseiro nestes dias de isolamento
"Aproveitem esse tempo em casa para fazer um pente-fino nos brinquedos para ver se não há pontas, retire cadeiras, móveis e outras superfícies da sacada ou debaixo das janelas para evitar que as crianças subam e veja se sua casa está equipada com proteção de quinas", sugeriu Eduarda.
Criatividade
Para a psicóloga Denise Gaspar Cieplinsk, especialista em tratamento de grupos de dor crônica, nestes dias de quarentena os pais devem redobrar os cuidados com os filhos. "Criança tem muita energia, tem muita criatividade, e os pais precisar colocar limites", diz. Para ela, o fundamental é encontrar ocupações para os pequenos.
A psicóloga lembra que as crianças costumam fantasiar as informações que recebem e que, por isso, elas próprias acabam criando suas "histórias" sobre o clima que vivem de convivência com a quarentena da doença. "Há um material muito interessante que recebi sobre como abordar esse assunto com as crianças aproveitando essa capacidade delas de historinhas", afirmou a psicóloga, que também está em quarentena em casa, no bairro do Campo Belo, em São Paulo. Ela explicou que o material é preparado para abordagem profissional do assunto com as crianças. A psicóloga, que é especialista em abordagem sobre o medo, argumentou que essa é uma maneira de tratar com as crianças um tema que é bem delicado. A "historia começa com 'Era uma vez…' e termina com um final feliz."
Unicamp
No setor de emergência pediátrica do Hospital de Clínicas da Unicamp, em Campinas, apenas uma criança foi atendida nos últimos dias com contusão por queda da cama. "Acredito que não está sendo tão comum porque está havendo mais supervisão dos pais", ponderou Fernando Belluomini, chefe da unidade de emergência pediátrica do HC da Unicamp. O especialista afirmou que os principais cuidados com as crianças nesses dias de isolamento em casa, diante do afastamento social, devem ser com a possibilidade de quedas, queimaduras, afogamentos e acidentes com intoxicação por produtos de limpeza. "Ela firmou que as quedas são as ocorrências mais comuns, assim como as queimaduras, confirmando dados de levantamento citados pela ONG ouvida pelo Estado.