Após um ano de namoro, o então companheiro de Thais Renovatto (40) foi parar no hospital devido a uma pneumonia. Ele faleceu logo em seguida e Thais ouviu da boca da sogra que a causa da morte era a aids. Foi através de um teste rápido que ela recebeu a confirmação que também havia contraído o vírus do HIV. De 2014 pra cá, a vida da publicitária tomou rumos que ela jamais havia esperado.
"Quando recebi o diagnóstico, meu mundo desmoronou", conta Thais. Pudera: com tanto preconceito que ainda existe ao redor do assunto, tendo acabado de perder um namorado para a aids e tantas outras questões na cabeça, a publicitária achou que ali seria o fim de sua história.
A irmã do meio foi a primeira para quem decidiu compartilhar a notícia. "Eu tinha na cabeça a imagem de quem tinha HIV morreria igual o Cazuza”, confessa Thais. Foi depois de muita terapia, tratamento e diálogo que ela se deu conta de que não, a verdade não era bem essa.
Thais começou o tratamento, passou a tomar um comprimido por dia e em três meses o vírus já estava indetectável em seu corpo; o que significava que ela não seria mais capaz de transmitir HIV. Na sua cabeça, porém, ainda nem passava a ideia de poder ter outro relacionamento, muito menos uma família.
Cenário brasileiro
Segundo um boletim divulgado recentemente pelo Ministério da Saúde, nos últimos dez anos o Brasil registrou queda de 25,5% no índice de mortalidade por aids. Em 2022, foram registrados 10.994 óbitos, sendo que, desse total, 61,7% dos óbitos foram entre pessoas negras e 35,6% entre brancos.
Ao todo, estima-se que existam um milhão de pessoas vivendo com HIV no Brasil. Desse total, 650 mil são do sexo masculino e 350 mil do sexo feminino. O problema, porém, é que enquanto 92% dos homens estão diagnosticados, apenas 86% das mulheres possuem diagnóstico, de acordo com o Relatório de Monitoramento Clínico do HIV.
Desse diagnosticados, 82% dos homens recebem tratamento antirretroviral contra 79% das mulheres. Diante de um cenário de medo e desinformação, é comum que mulheres com HIV não busquem tratamento ou não se informem sobre seus direitos e possibilidades.
Foi em 2016 que Thais conheceu a pessoa que mudaria sua forma de lidar com o diagnóstico soropositivo. Na época, ela e Rodrigo Delbianco (41) trabalhavam na mesma empresa e logo começaram a se envolver romanticamente. “Não achava, porém, que ele devia ficar comigo; achava que ele merecia alguém 'saudável'". Até que um dia a camisinha estourou durante uma relação sexual e Thais tomou a decisão de contar ao parceiro que ela tinha HIV.
Para sua surpresa, isso não a afastou dela (vale ressaltar, aliás que, no Brasil, a pessoa soropositiva tem direito na lei de não contar aos outros que possui HIV). Mas Thais planejava contar o diagnóstico ao parceiro. "Sentia que estava enganando ele, que estava escondendo o meu diagnóstico", disse.
Conheço casos de pessoas que vivem com o HIV há anos, estão numa relação há anos e nunca compartilharam com o parceiro que são soropositivos
Durante muito tempo, inclusive, Thais se culpava por ter contraído o vírus: “Até que entendi que não havia cometido erro nenhum ao transar sem camisinha com o meu ex-namorado e que, na verdade, erradas estavam as outras pessoas que ainda se mantinham desinformadas sobre o assunto”.
Rodrigo seguiu ao lado de Thais e não só. Depois de alguns anos juntos, os dois decidiram se casar, Rodrigo foi ao médico de Thais para saber dos riscos e cuidados que deveria tomar dali pra frente e, quando a data da celebração estava chegando, eles descobriram que seriam pais pela primeira vez.
Maternidade e HIV
"Falta informação sobre o tema", reforça Thais. Hoje em dia, com o devido acompanhamento médico, é possível, sim, engravidar de forma natural mesmo sendo soropositiva.
“Acredito que os discursos errôneos de médicos que incentivam mulheres soropositivas a gastarem R$50 mil em tratamentos de FIV afastam muitas delas de viverem o sonho da maternidade"
Quando grávida, ela passou a fazer testes de contagem do vírus em intervalos mais curtos e durante o parto – cesariana, para evitar contato direto do bebê com muito sangue – tomou um antirretroviral (AZT), que também foi dado ao recém-nascido em forma de xarope.
Isso não a afastou de sentir medo e receio de contaminar o filho durante a gestação. "Não fazia sentido que alguém que estivesse dentro de mim, sendo alimentado pelo meu cordão umbilical, não se contaminasse com o vírus".
Amamentar, porém, não foi possível. "Eu tinha muito leite e não podia amamentar, ao contrário: tinha que dar remédio para ele. Meu filho virava o rosto na direção do meu peito e eu o afastava, em lágrimas", relembra Thais, além de João (6), hoje também é mãe de Olívia (5). Os dois filhos de Thais, assim como o marido, não possuem HIV.
Eu só tive paz mesmo quando recebi o último exame de sorologia da Olívia, que confirmava que ela não possuía o vírus. Dali em diante respirei aliviada
Devido o xarope que as crianças precisavam receber para negativar o vírus, era comum que as crianças passassem mal após a ingestão da substância. "Era muito doce, às vezes eles vomitavam e eu chorava sem parar. Eu pensava ‘meu Deus, eles estão tendo que passar por isso por minha culpa. Por que eu não transei de camisinha? Como eu não percebi que meu ex tinha aids?’ Foi um dos momentos em que mais me culpei por ser soropositiva”, garante a publicitária.
Em 2018, contudo, durante o período de licença-maternidade, Thais decidiu tornar sua história pública. Nessa época, ela lançou o livro “5 Anos Comigo”, em que conta desde o momento aterrorizante do diagnóstico até quando descobriu que o HIV não a impediria de ter uma família.
Bichinho da goiaba
Por causa da idade das crianças, Thaís ainda não conversou “de cara a cara” com os filhos sobre o assunto e prefere adotar um tom lúdico. "Digo para eles que tem um bichinho da goiaba vivendo dentro de mim e que, para evitar que ele acorde, eu preciso tomar remédio todo dia".
Na escola, garante que não é vítima de preconceito e não recebe olhares feios de outras mães por causa do diagnóstico, bem como no trabalho (hoje ela é gerente de marketing em uma empresa multinacional, além de ativista, escritora e palestrante). “Mas sei que sou exceção", argumenta. “O meu caso é raro; o quanto de portadores de HIV que não foram demitidos por causa do vírus? Que não foram expulsos de casa? Que não perderam contato com amigos e foram excluídos da sociedade?", comenta.
Meu companheiro escolheu ficar ao meu lado mesmo depois do diagnóstico, quantas pessoas não são abandonadas depois que revelam ser soropositivas?
Thais sabe que sua história é exceção, mas gostaria que não fosse. "A rede de apoio que tive acesso, todas as pessoas que conversaram comigo, o fato de ter tido um parceiro incrível, tudo isso contribuiu para que eu pudesse reescrever a minha história depois de receber o diagnóstico. Gostaria que isso não fosse um privilégio, mas é”, finaliza Thais.