RIO - A epidemia de covid-19 aprofundou ainda mais as desigualdades brasileiras, como revela a última nota técnica do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS). E a de raça é a maior delas. Em qualquer recorte empregado a chance de um negro morrer por causa do novo coronavírus é sempre maior que a de um branco. O ápice dessa diferença ocorre entre os negros analfabetos e os brancos com nível superior: 80% contra 19%.
O grupo usou dados do Ministério da Saúde atualizados até o último dia 18 de maio e avaliou cerca de 30 mil casos confirmados de covid-19 que já tenham tido um desfecho - ou seja, alta médica ou morte. As taxas de óbito refletem diretamente as desigualdades socioeconômicas, além da pirâmide etária e da distribuição geográfica.
"A progressão de casos confirmados de covid-19 tem sido influenciada por fatores socioeconômicos, além da dinâmica de contágio própria de uma epidemia", afirmaram os cientistas, no estudo. "A taxa de letalidade do Brasil é muito alta, influenciada pelas desigualdades no acesso ao tratamento."
Conforme os dados analisados, aproximadamente dez mil pacientes foram identificados como brancos e quase 9 mil como pretos ou pardos, de acordo com as categorizações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar do número parecido de casos, quando apenas as mortes são avaliadas a diferença é brutal: 55% dos pretos e pardos faleceram, contra 38% dos brancos.
A diferença de escolaridade também se reflete nos óbitos. Os que não têm escolaridade apresentam taxas três vezes maiores (71%) dos que têm nível superior (22,5%). As desigualdades de renda e de acesso a serviços sanitários básicos e de saúde explicam as diferenças no impacto.
Quando os cientistas combinaram raças e escolaridade, as desigualdades ficaram ainda mais evidentes, e sempre com um maior porcentual de óbitos para pretos e pardos em todos os níveis de escolaridade. Em média, essa diferença é de 37%. No nível superior, no entanto, está a maior diferença: 50%. Quando todos os fatores são levados em conta, os negros sem escolaridade apresentam uma proporção quatro vezes maior de mortes do que os brancos com nível superior (80% contra 19%).
Entre os cerca de 30 ml casos avaliados, aproximadamente 55% tiveram alta. A maioria dos casos era de pessoas entre 50 e 70 anos, sendo que, para aqueles acima de 60 anos, o porcentual de mortes ficou acima de 50% e, entre os que tinham mais de 90 anos, 84%. Há mais mortes conforme a faixa etária aumenta.
A localização geográfica dos pacientes também tem um impacto direto nas suas chances de sobreviver à doença. O estudo do NOIS mostrou que num município com baixo ou médio Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) a chance de morte é quase o dobro do que numa cidade com IDH muito alto.
"As análises evidenciam discrepâncias", concluíram os cientistas, "verificando-se que a proporção de óbitos entre pretos e pardos foi maior do que a de brancos, seja por faixa etária, nível de escolaridade e em municípios de IDH elevado, confirmando as enormes disparidades no acesso e qualidade do tratamento no Brasil."
O NOIS é formado por cientistas da Pontifícia Universidade Católica (PUC), da Fiocruz, da UFRJ e do Instituto Dor de Pesquisa.
3 PERGUNTAS PARA...
Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas
1. Que características uma favela tem que facilita o contágio do coronavírus?
Mais da metade das pessoas vive de maneira autônoma ou informal, ou seja, elas têm renda zero. Então não conseguem viver (se sustentar) por 15 dias.
2. A pandemia escancara as desigualdades?
Quando alguém que faz home office pede comida, quem está cozinhando é um favelado. Essas pessoas estão mais expostas e a relação que têm com o vírus é de se acostumar ao medo. Quando voltam para casa, ainda estão em um espaço muito pequeno, num território que 26% das pessoas não tem água e o saneamento básico é precário.
3. Qual a solução?
Há pouco a se fazer quando o Estado diz para ficar em casa, pois a vida é um bem maior. Então é preciso transferir renda. São pessoas que pagaram imposto a vida inteira. / MARIANA HALLAL e PAULO FAVERO