Um "buraco entre a vagina e o ânus": a saga da jovem de 22 anos com fístula perianal

Bianca Brandt, de 22 anos, levou 10 meses e consultas entre sete a 10 médicos para ser diagnosticada com fístula perianal

19 jun 2023 - 05h00
(atualizado em 4/7/2023 às 10h37)
Bianca Brandt, produtora publicitária
Bianca Brandt, produtora publicitária
Foto: Arquivo pessoal

"Eu tenho um buraco entre a minha vagina e o meu...". É assim que a produtora publicitária Bianca Brandt, 22, começa os vídeos em que narra sua saga de sintomas, consultas e negligência médica até descobrir que tem uma fístula perianal, espécie de comunicação anormal entre o canal anal e a pele perianal, como resume a coloproctologista e endoscopista Lívia Cardoso Reis.

A jornada de Bianca começou — de modo consciente — em junho de 2022, quando ela procurou uma emergência médica na cidade de São Paulo após passar dias com fortes dores no períneo, sofrendo até para sentar ou andar. Hoje, porém, ela avalia que antes disso já sofria com sintomas que provocaram a doença. 

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"Tudo que eu tive foi decorrente de uma síndrome do intestino irritável. Esse processo de irritação contínua gerou um abscesso (bola de pus) que evoluiu pra uma fístula", conta em entrevista ao Terra.

Os médicos ouvidos pelo portal confirmam: a formação do abscesso é a forma mais provável de desenvolver uma fístula perianal. Tudo começa com uma infecção no ânus, em pequenas glândulas que ficam no canal anal. Como o coloproctologista Bruno Werneck explica, isso gera a formação de pus, que, por sua vez, fica alojado próximo ao ânus — eis aí o abscesso.

"A perfuração espontânea ou cirúrgica da pele que drena esse pus dá origem a uma comunicação entre o canal do ânus e a pele perto dele e é chamado de fístula", esclarece o médico, membro titular da Sociedade Brasileira de Coloproctologia.

Quem sofre com o problema manifesta sintomas como vermelhidão na região ao redor do ânus ou nas nádegas, associada a dor local, e saída de secreção (pus, sangue ou fezes) do ânus ou algum orifício próximo a ele, conforme cita a também coloproctologista Amanda Alves.

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Luta por atenção e diagnóstico médico

Esse último sintoma, inclusive, foi o que alarmou Bianca. Inicialmente tratando um cisto de Bartholin (formado quando há obstrução das glândulas nos lábios vaginais), que já aparecia pela segunda vez, a jovem correu para o chuveiro e drenou a secreção até que percebeu que o líquido saía pela vagina, como esperado, mas também pelo ânus. 

“Eu não consigo conceber pra vocês o tamanho do desespero que eu fiquei”, disse aos seguidores quando fez o relato.

Diante do susto, Bianca conseguiu uma consulta, mas após longa espera, angústia e lágrimas, tudo que ouviu da médica foi: “eu acho que você deveria procurar um pronto-socorro ginecológico”. Simples assim, sem exame físico ou pedido de exames.

Dali, a produtora se deslocou para um pronto-socorro e ressalta ter pagado R$ 500 por uma consulta de dois minutos. Mais uma vez, sem avanços.

Ao longo deste ano em que os sintomas lhe chamaram atenção, Bianca estima ter passado por entre 7 e 10 médicos até encontrar o especialista que acompanha seu caso.

"Ele me ouviu, desenhou a anatomia, pediu exames. Todos os outros médicos, sem exceção, não me deram o suporte que eu precisava, nem técnico nem emocional", lamenta. De acordo com a jovem, os profissionais eram categóricos ao dizer que não existia qualquer problema e a maioria sequer a examinava. A recomendação deles era para que Bianca buscasse ajuda psicológica.

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Sem suporte médico, ela investigava o problema na internet, o que a levou a um universo de informações trágicas. "Não foi só um susto, foi como se meu mundo inteiro tivesse desabado".

Seu abalo foi ainda maior porque as pesquisas a levaram a suspeitar de uma fístula retovaginal, quadro que pode ser ainda mais grave. Bianca se deparou com casos de mulheres que já não tinham vida sexual ou amigos, evitavam sair de casa e nem conseguiam ir ao banheiro em espaços públicos.

Como explica a coloproctologista Livia, diferente da fístula perianal que liga o canal anal à pele próxima ao ânus, a retovaginal cria uma conexão anormal entre o canal anal ou o reto e a vagina. A doença costuma ser decorrente de lesões obstétricas durante o parto ou da doença de Crohn (inflamação crônica que afeta o intestino), mas também pode ser consequência da radiação ou neoplasias pélvicas.

"Nas fístulas retovaginais, a paciente se queixa principalmente da saída de fezes pelo canal vaginal e, por esse motivo, é comum a ocorrência de infecções urinárias de repetição", pontua.

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Rede de apoio no TikTok

Esse cenário desolador e a dificuldade em encontrar relatos de quem já passou pelo problema foi também o que motivou Bianca a contar sua história nas redes sociais. Primeiro, ela postou um vídeo bem-humorado, que já conta com mais de um milhão de visualizações no TikTok, sobre sua ida ao proctologista — aquele que a atendeu bem, desenhou a anatomia do seu ânus e a acompanha até hoje.

Dada a curiosidade das pessoas, ela fez outros vídeos sobre seu retorno ao consultório médico e, em maio deste ano, iniciou um relato dividido em seis vídeos — o último compartilhado na segunda-feira (12) — sobre a fístula.

Para a jovem, essa era uma forma de levar informação e apoio para quem estivesse enfrentando situação semelhante. "Quando eu entrei nessa jornada, de começar a perceber que tinha alguma coisa errada, o que eu fiz foi começar a pesquisar. Tudo que eu via era do ponto de vista médico, nunca da paciente e eu precisava muito desse suporte [de quem já enfrentou o diagnóstico]. Precisava entender que existe uma vida após a fístula e está tudo certo. Pessoas se adequam, conseguem seguir em frente".

Impacto no dia a dia

Com isso, Bianca não negligenciou sua saúde mental. Já previamente diagnosticada com transtorno de ansiedade, ela se manteve em terapia, conselho que lembra ter ouvido quando relatou seu caso nas redes sociais.

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"As meninas que falaram comigo disseram isso: 'busque um terapeuta'. Achar que a nossa vida como mulher acabou é muito real, pelo menos pra mim. Existem casos de cirurgia que a pessoa fica com incontinência, então precisa usar fralda para o resto da vida. Eu pensei que ia perder minha autoestima, ‘talvez eu perca meu namorado, meu marido, porque sabe Deus se eu vou voltar a ter uma vida sexual ativa’ e aí o que sobra, não é? Um pensamento até muito machista enraizado na nossa cabeça, mas é real, qual é minha função de mulher, esperada pela sociedade?", reflete.

No caso dela, o parceiro se manteve ao lado. "A relação sexual dói, é incômoda. No começo, isso afetou muito meu relacionamento porque eu não tinha coragem de contar para o Vinícius", acrescenta, citando o namorado com quem vive junto há cerca de dois anos.

Mas esse temor passou. Com a família no interior, foi Vinicius quem a acompanhou durante a peregrinação em clínicas e emergências, fossem públicas ou privadas.

Felizmente, o problema físico de Bianca é controlável. Isso só não evitou que ela perdesse aulas na faculdade de Biologia — que faz por hobby — ou que dispensasse freelas e adiasse trabalhos de Redação e Marketing quando se sentia mal tamanha dor e desconforto.

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Tratamento delicado

De junho passado a abril, quando desconhecia a raiz dos sintomas, Bianca lidou com ansiedade e angústia. Mas se engana quem pensa que ela é puro alívio agora que consegue dar um nome a seu problema de saúde.

Embora a fístula perianal não seja tão grave quanto a retovaginal, o tratamento cirúrgico não está entre os mais simples. "O médico me pediu uma ressonância magnética pra confirmar, pra eles entenderem o caminho da cirurgia, melhor abordagem, melhor técnica. E eu ainda não fiz por medo", admite, ao pontuar que muitas mulheres passam por diversas intervenções cirúrgicas na tentativa de resolver o problema.

O coloproctologista Bruno Werneck esclarece que "mesmo os melhores tratamentos cirúrgicos para fístula não conseguem 100% de cicatrização". Ele explica que isso se deve ao local, que é constantemente contaminado e precisa manter sua função de evacuação durante o tratamento.

Amanda Alves, também da área, acrescenta ainda a condição clínica do paciente. "Outros fatores são cirurgia não efetiva, pacientes com algum tipo de imunossupressão que atrapalha a cicatrização, caso de portadores de HIV e diabéticos, por exemplo, e pacientes com doença inflamatória intestinal, como a doença de Crohn, em que o paciente é cronicamente inflamado".

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Apesar disso, o caminho tradicional e efetivo para tratar a fístula é a cirurgia. O que varia é o tipo do procedimento, condicionado à situação clínica do paciente e à complexidade da fístula, entre outros fatores.

Até lá, no caso de Bianca, os cuidados são básicos: trocar o papel higiênico por uma bucha higiênica, alimentação rica em fibras e bom senso.

Fonte: Redação Terra Você
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