É possível imaginar, em países estruturalmente escravagista, grandes movimentos afro-diaspóricos?
Sim! Dentre muitos territórios da América Latina, duas importantes capitais brasileiras se destacam no cenário desse movimento em prol da história e cultura negra: São Paulo, com o Museu Afro Brasil, e Salvador, com o reaberto Museu da Cultura Afro-Brasileira (Muncab).
Pode parecer improvável, para o local do continente americano onde perdurou por mais tempo o Regime Escravista, mas é neste mesmo território que resistem (no tempo) e se reinventam (sempre em tempo), instituições de preservação e educação fundamentais e cada vez mais acessíveis ao povo.
Com propostas inéditas, lançadas em fins do ano de 2023, tanto o Museu Afro Brasil quanto o Muncab inauguram uma nova era para a cultura brasileira, de letramento racial evidentemente ampliado.
Como prevê a Pesquisa de Tendências: narrativas para o futuro dos museus, esses equipamentos culturais já não são lugares exclusivos e elitizados como no passado, tampouco testemunhas de uma memória estanque dos povos e culturas. Se há dois séculos significavam atestado de nobreza, hoje os museus são desafiados a se conectarem com o cotidiano social das pessoas. E o fazem muito bem!
Museu Afro Brasil, uma conquista de vidas
Até conseguir um espaço físico como o que ocupa hoje, dentro do mais famoso parque de São Paulo, o Parque Ibirapuera, mais de duas décadas de pesquisas e exposições foram dedicadas à história de criação do Museu Afro Brasil, sem nenhum incentivo ou apoio.
Cerca de 1.100 obras, do acervo pessoal de Emanoel Araújo, foram inicialmente selecionadas para esse projeto — fruto do trabalho coletivo de uma equipe de consultores, especialistas em Museologia, História, Antropologia, Artes e Educação —. Com a curadoria do próprio colecionador, foram reunidas pinturas, esculturas, gravuras, de artistas brasileiros e estrangeiros, além de fotografias, livros, vídeos e documentos que materializaram essa utopia: a democratização da História, Memória e Cultura do povo negro no Brasil contemporêneo.
O Museu Afro Brasil é uma das instituições pioneiras no posicionamento como instrumento para repensar novos conceitos de inclusão social na capital paulista por meio das artes plásticas. Após a morte do seu colecionador - que viveu muitas vidas em (como escultor, pintor, desenhista, ilustrador, figurinista, cenógrafo, professor, curador e museólogo), além de responsável, também, pela transformação da Pinacoteca - o novo desafio que se apresenta é a valorização dos esforços individuais e coletivos na manutenção desse legado.
Já que parte do seu legado sobre a cultura afro-brasileia, reunido ao longo de décadas (obras raras criadas por artistas negros, divididas em sete categorias dierentes) não teve um destino público, como era o seu desejo em vida.
Arrematado, em leilão de lote único, o acervo particular de Emanoel Araújo (1940-2022) pertence agora à Fundação Lia Maria Aguiar. Ainda não se sabe como será preservada a sua caracterização. A coleção vendida pode compor um novo museu, exposição, ou alguma outra aplicação que imprima a sua relevância social (agora, sem a curadoria particular do seu grande colecionador, cujo lugar de fala ocupado determinou seus grandes feitos profissionais).
“Ao mesmo tempo em que estou feliz, estou frustrado, porque esse leilão mostra uma certa rejeição ao Emanoel. Quando ele era vivo, ele era um homem poderoso e respeitado. Agora, não apareceu nenhum outro bid. Essa coleção — amealhada ao longo de 50, 60 anos — merecia ter múltiplas ofertas. Era pra ter atraído instituições, museus, mas eles sequer foram lá ver.” relata Jones Bergamin, o "Peninha", fundador da Bolsa de Arte, que organizou a venda do acervo.
Muncab e a retomada do seu eternizado 'museu em processo'
Embora constituído, numa das principais capitais do país, como um importante espaço de preservação do legado histórico, artístico e social dos afrodescendentes na formação da identidade brasileira, o Muncab também enfrentou contratempos (financeiros, administrativos e operacionais) que levaram ao seu fechamento durante três anos.
Sua primeira exposição, em 2009, aconteceu com o espaço ainda em obras e sem qualquer apoio do poder público. Contando com trabalhos voluntários para manutenção e gestão do Museu.
E como a cultura é um processo contínuo onde não existe manifestação vã. A reabertura do Muncab, no Mês da Consciência Negra em 2023, foi parte da agenda "Novembro Salvador Capital Afro" que organizou sua revitalização para abarcar exposições temporárias e de longa duração, com multi linguagens artísticas, inclusive do universo digital, como a proposta intitulada Museu 360º.
Agora, em parceria com a prefeitura de Salvador e com recursos do Fundo Nacional de Cultura, o local representa renascimento, liberdade e reparação, ao público. Com um acervo de 350 trabalhos realizados por artistas do Brasil, da África e das Américas, o Muncab promete uma projeção ainda mais expandida.
Memória e presente afrodescendentes resistem
Com o intuito de iluminar narrativas invisibilizadas pela hegemonia branca ocidental, tanto o Museu Afro Brasil quanto o Muncab são faróis voltados às riquezas afro, indo muito além do sofrimento que marca o seu epistemicídio.
Não que se limitem a museus, a dimensão e expressividade das culturas africanas e afrodescendentes, no Brasil. O movimento afro-diaspórico é abarcado por muitas outras conquistas sociais em áreas do conhecimento e vertentes múltiplas, que extrapolam qualquer estabelecimento físico. Contudo, ainda é institucionalmente inédito o reconhecimento (a nível simbólico e material) da presença centenária de África, na composição identitária do país.
Conectando passado, presente e futuro, as instituições se destacam como guardiãs vitais de memórias e saberes, materializando-os como patrimônio cultural que inspira gerações a explorar e a, principalmente, celebrar a nossa diversidade.