Terra natal do diretor Allan Deberton, a pequena Russas, no Ceará, é cenário de 'Pacarrete', filme que acaba de entrar no catálogo de filmes nacionais da Netflix.
É nessa pequena cidade de quase 80 mil habitantes, no sertão cearense, que acontece a comovente história da personagem homônima de 70 centímetros de cintura, que só anda "cheirosa e todo emperiquitada", e que queria ser artista.
Pacarrete é "louca". Não só pelo comportamento explosivo que afasta quem pisa na sua calçada, mas também porque quer se apresentar como bailarina na festa de 200 anos da cidade, no Vale do Jaguaribe.
Mas a rudeza da protagonista só enfraquece quando ela, metida em saia tutu e na ponta dos pés, dança balé.
'Pacarrete', longa "movido por uma locomotiva de sensações", é sobre loucura, sonhos e desafios de ser artista num Brasil interior que parece só ter ouvidos para a música de massa.
Essa obra sensível é um resgate das lembranças de Deberton, que se inspirou em uma conterrânea sua e levou mais de uma década para ficar pronta.
E quem conduz com maestria essa viagem pelo interior cearense é a atriz paraibana Marcélia Cartaxo ('A Hora da Estrela', 'Madame Satã'), que estampa na tela uma espécie de Edith Piaf sertaneja (do figurino parisiense ao comportamento explosivo).
A protagonista é rude com quem não entende sua arte, mas consegue ser doce quando se encontra com o compreensível Miguel, interpretado pelo ator João Miguel ('Cinema, Aspirinas e Urubus'e 'Estômago'). É como se os espinhos do mandacuru revestissem o corpo suave de Anna Pavlova.
"Pacarrete é forte como um mandacaru"
('Pacarrete')
Russas é a França que Pacarrete idealizou para dar sentido a seu sonho, arriscando algumas palavras em francês, acompanhando a cotação do euro para quando for a Paris e ouvindo uma trilha sonora que vai de Tina Tunner a Tchaikovsky, do ay-ay-ay do chileno Paul Mauriat ao yé-yé de Sylvie Vartan.
"Ela é muito culta e tem um corpo que fala todo o tempo", define a atriz Marcélia Cartaxo que, para assumir o papel, atmbém estudou francês e fez aulas de ballet, voz e canto.
'Pacarrete' é regional, mas sua história universal caberia em qualquer outro lugar do planeta. Para o diretor, é mais do que um filme.
"É fazer justiça com uma mulher que pedia um palco e dizia, aos berros, que ainda iriam ouvir falar dela. Quando eu vejo a plateia em silêncio, sentindo o filme, tenho certeza que estão pensando na vida, no tempo que passa rápido e em alguém que passou e não tivemos a oportunidade de pedir desculpas", analisa Deberton, em nota enviada ao Viagem em Pauta.
Russas, no Ceará
A 165 quilômetros de Fortaleza, o município foi um dos mais importantes centros econômicos do Vale do Jaguaribe e está longe de ser preferência para quem viaja pelo Ceará.
Suas poucas opções turísticas incluem uma igreja matriz do início do século 18 e atrativos naturais como o Rio Jaguaribe, açude, riacho e lagoa.
No entanto, esse palco de antigas congadas e cavalhadas parece o endereço perfeito para uma figura multidisciplinar como Pacarrete, terra natal de artistas como o maestro Orlando Leite (ex-aluno de Heitor Villa Lobos), o músico Liduíno Pitombeira e o poeta Francisco Carvalho (Academia Cearense de Letras).
Já a origem do nome dessa cidade de passado militar guarda diferentes versões.
Para a população, seria uma referência às éguas de cor ruça (pardo claro) do Seu Bernardo. Para estudiosos, uma homenagem aos primeiros moradores da cidade, provenientes da Serra Russas, em Pernambuco.
Mas, em um cinema nacional que costuma contar histórias ambientadas em cidades fictícias, 'Pacarrete' é o Nordeste que mostra a cara e não reforça as velhas imagens sobre a região.
'Pacarretes' na Neftflix
A entrada do filme no catálogo da Netflix é uma ação dessa plataforma de streaming para o Dia do Cinema Nacional, celebrado nesta quarta-feira, 19 de junho.
A coleção Simplesmente Cinema Brasileiro traz também produções nacionais de sucesso, como 'Terra Estrangeira' (1995), com Fernanda Torres e Fernando Alves Pinto, 'Central do Brasil' (1998), com Fernanda Montenegro, 'Aquarius' (2016), com Sônia Braga, o documentário 'Uma noite em 67', de Ricardo Calil, e clássicos de Eduardo Coutinho ('Santo Forte' e 'Jogo de Cena'), entre outros títulos.