Em sânscrito, loka significa 'planeta' ou 'lar de seres divinos'. Em português, quer dizer 'gruta pequena'. Mas na Serra do Tungão, no Cariri paraibano, loca é sinônimo de resistência.
Foi ali que, antes de tocar seu pífano de PVC noutros terreiros, Zabé da Loca morou por pelo menos 25 anos numa casa improvisada com paredes de taipa debaixo de uma rocha.
"Zabé era gigante. Não é fácil viver a vida inteira dentro daquela caverna sem nenhuma estrutura e ainda ser feliz como ela era", descreve a afilhada Josivane Caiano, antes de começar a chorar, emocionada, durante entrevista para o Viagem em Pauta.
"Tá chorando, nega mole?", questionaria a própria artista, com seu humor que debochava da aridez da vida.
Se estivesse (ainda mais) viva, neste 12 de janeiro, Zabé completaria cem anos.
Da pedra para o mundo
Isabel Marques da Silva aprendeu a tocar 'pife' com o irmão, na infância, mas só foi descoberta, aos 79 anos.
Em sua breve carreira, iniciada em 2003, a Rainha do Pífano gravou três discos, tocou no Fórum Mundial de Cultura, foi condecorada com a Ordem do Mérito Cultural, do Ministério da Cultura, e eleita Revelação da Música Brasileira, no Prêmio da Música Brasileira, aos 85 anos.
Sem falar na seleção para o projeto 'Brasil na França' e o lançamento de um documentário, em Estocolmo, na Suécia.
"Zabé é a expressão maior da cultura popular. Sua música é de raiz, dessa origem da música cabaçal, indígena", descreve Arthur Pessoa, vocalista da banda Cabruêra, cujo álbum de estreia, em 1999, traz na capa os pés de Zabé, no registro do fotógrafo Ricardo Peixoto.
"É o pé no chão, na terra. É essa Paraíba que representa a força de Zabé."
Arthur Pessoa - músico e pesquisador
Não raro, artistas costumam tê-la como um elo entre o ancestral e o atual.
No ano passado, a cantora Juliette, paraibana de Campina Grande, lançou 'Ciclone', cuja faixa 'Sai da Frente' é uma volta às origens. Em seu álbum de estreia, o triângulo e o pífano tocam noutros terreiros.
"Desde a primeira vez que ouvi aquele sopro ecoando, me arrepiei inteira como se o som de Zabé me enchesse da coragem, força e doçura daquela mulher. Me senti conectada às minhas raízes, ao feminino, aos ancestrais", conta Juliette ao Viagem em Pauta.
Em 2024, a Cabruêra, cujo repertório vai do cancioneiro popular à música eletrônica, lança o álbum 'Sustenta a pisada', onde a faixa 'Pararriba' sugere "voar no pife de Zabé".
"Ela é tão importante que precisou Gilberto Gil descobri-la e levá-la para o mundo. Zabé deveria receber muito mais", sugere o paraibano Arthur, para quem a artista "é a velha guarda, é a nossa Lia de Itamaracá".
Já Juliette acredita que é uma inspiração que merece ser reverenciada "para que as novas gerações tenham terrenos bonitos e férteis".
"Não podemos esquecer daqueles que vieram antes de nós, como Zabé da Loca, mulher marcada pelas dores e pelos amores de uma vida alimentada pela força e pela arte", diz a cantora.
Para o músico pernambucano Jam da Silva, a conterrânea "tocava, lindamente, seu pife", em estilos musicais que iam do xote à ciranda, passando pelo baião e pelo galope. "Ela contava suas histórias com a brasilidade do sertão nordestino, na sua mais pura essência", descreve Jam, em depoimento para o Viagem em Pauta.
O mundo pedra de Zabé da Loca
Desde o nascimento em Buíque, a 290 km do Recife, a dureza da vida interior foi a sina de Zabé.
Essa cidade na boca do surreal Vale do Catimbau, Capital Pernambucana da Arte Rupestre, tem formações geomorfológicas únicas e 30 sítios arqueológicos catalogados pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
No entanto, Zabé ganhou o mundo sem deixar seu mundo pedra.
"Qualquer canto é canto", me confessou, numa das duas vezes em que a visitei, em 2011, sobre as apresentações que já tinha feito em outras cidades brasileiras.
Em 2003, Zabé passou a morar no assentamento Santa Catarina, uma das maiores áreas de reforma agrária da Paraíba, no setor rural de Monteiro, a 330 quilômetros de João Pessoa.
"Moro aqui, mas não gosto. Eu sou filha de mocó", descreveu a experiência sobre deixar sua gruta para morar numa casa de alvenaria.
A adaptação não foi fácil.
"Eu fiz um fogão a lenha, mas Zabé cavou um buraco do lado de fora porque queria ficar acocorada na beira do fogo. Como não tinha lenha, começou a quebrar as cadeiras da mesa que eu tinha comprado para ela", lembra Josivane, aos risos.
Sem falar nos constantes sumiços, em que se mandava para a loca com uma trouxinha com café, açúcar e cigarro.
"Eu não posso abandonar o que é meu", dizia Zabé, que já estava tão enraizada à loca que, quando o marido Delmiro faleceu, o velório foi lá mesmo. Coberto por uma estopa, partiu enrolado numa rede para ser enterrado na cidade vizinha da Prata.
Zabé na loca
Um dos registros mais marcantes da curta história artística de Zabé foi captado pelo fotógrafo Augusto Pessoa, como a sequência de fotos feitas quando a artista ainda conseguia subir até seu refúgio rochoso.
Apesar de ter estado três vezes em Monteiro, ele só pôde ir à loca com Zabé em uma delas, cujo resultado são as fotos em que ela aparece tocando 'pife' numa das janelas da casa, numa espécie de extensão da aridez local.
Para Augusto, foi uma das experiências mais significativas, em seus 30 anos de carreira.
"Zabé era (e é) uma dessas figuras únicas que povoam o Brasil profundo. Sua prosa leve e sua música de raiz, sempre carrego comigo pelas andanças Brasil adentro", descreve para o Viagem em Pauta.
VEJA FOTOS DE ZABÉ DA LOCA
Sai da frente
Assim como Zabé ultrapassa fronteiras, Juliette é capaz de, num dia, estar entre celebridades vestida de gala e, noutro, balançar num pêndulo, na Pedra da Boca, em Araruna, também na Paraíba.
"Os extremos sempre fizeram parte da minha história e a Pedra da Boca é tão especial, ou até mais que qualquer baile de gala, os dois são reflexos da nossa cultura. Há beleza em tudo que vibra arte", analisa.
Assim, surgiu um dos seus novos trabalhos, o videoclipe 'Sai da Frente', cuja ambientação num teatro traz referências a Zabé da Loca e… William Shakespeare.
"Foi uma espécie de experimentação. A ideia de unir o clássico com o popular de Zabé surgiu para mostrar que as fronteiras entre os estilos são permeáveis. Isso ajuda a tornar a minha arte ainda mais vibrante", explica a cantora sobre o clipe, que começa com um pano vermelho que revela Juliette tocando pífano.
Para Josivane, enquanto instituições não dão o devido valor à pifaneira, outros a reverenciam.
"No auge da carreira, Juliette tem Zabé como referência, uma mulher à frente do seu tempo que, num ambiente totalmente masculino, ousou fazer o que fez", diz a afilhada.
Memorial da Rainha
"Quatro dias antes de morrer, ela me pediu para que eu não abandonasse a loca nem as coisas dela. É como se não quisesse que sua história morresse", lembra Josivane que, um ano depois da morte da artista, inaugurava o Memorial Zabé da Loca.
O complexo turístico, mantido em Monteiro sem apoio do poder público, tem restaurante, biblioteca, acervo pessoal e trilhas sinalizadas por caminhos percorridos por Zabé, como o das plantas medicinais usadas por ela.
"Se eu não tivesse montado esse memorial, já tinha acabado tudo, ninguém teria mais procurado", analisa Josivane, quem também administra o local.
"A Josivane é uma verdadeira guardiã da história de Zabé. É lindo ver o esforço dela para manter viva essa chama cultural"
Juliette, que diz estar em seus planos conhecer o memorial
Porém, o que não parece acabar nunca é o apagamento de certos artistas populares. É, no mínimo, um descaso ter uma figura como Zabé da Loca, cujo centenário não terá um evento oficial sequer, restrita ao trabalho solo de Josivane.
Procurada pela reportagem, via assessoria de imprensa, a Secretaria de Estado da Cultura da Paraíba disse que a falta de homenagens se deve aos compromissos da pasta com prazos de leis de incentivo.
"Zabé da Loca tem uma incrível importância cultural para a Paraíba e é motivo de grande orgulho para o estado", declarou Pedro Santos, secretário de Cultura do estado, em nota enviada ao Viagem em Pauta.
É incrível, é importante e dá orgulho. Mas o centenário desse Patrimônio Imaterial da Paraíba vai passar em branco.
A reportagem também entrou em contato com a secretária de Cultura e Turismo de Monteiro, Christiane Sinésio Leal, via telefone, que confirmou que o município tampouco tem algo programado para a data. Ao solicitar um depoimento sobre a efeméride, Christiane disse que não poderia fazê-lo, devido ao recesso da Prefeitura e a questões de saúde na família.
Até então, a única ação dedicada à nordestina que levou seu 'pife' para o mundo é a 5ª edição do "Novos palcos e plateia: terreiros de Zabé", projeto no valor de R$ 50 mil, aprovado pela lei Paulo Gustavo, em que o pesquisador Romério Zeferino propõe apresentações musicais nos espaços Pedra do Índio e Terreiro de Zabé, em Monteiro, nos dias 29, 30 e 31 de março.
"Hoje, vivo uma luta diária para as pessoas reconhecerem Zabé e sua história, para que tudo isso não caia no esquecimento. Mas eu me sinto sozinha, é uma luta de uma pessoa só", desabafa Josivane.
"Se Dona Zabé tivesse nascido na França, a sua arte seria devidamente reconhecida."
Jam da Silva - cantor e percussionista
O turismo paraibano, que tanto se beneficiaria com uma rota temática dedicada a Zabé, sobretudo o de base comunitária, também deve uma homenagem à altura. Com olhos voltados para a dupla "sol e praia", a interiorização do turismo no estado ainda está longe de ser uma realidade para os turistas que vêm de fora.
Ferdinando Lucena, atual presidente da PBTur, empresa de economia mista vinculada à Secretaria de Estado do Turismo, lembra que, em 2023, a Comissão de Desenvolvimento, Turismo e Meio Ambiente da Assembleia Legislativa da Paraíba reconheceu o Terreiro de Zabé da Loca, em Monteiro, como patrimônio histórico, turístico e imaterial da Paraíba.
"O local é um importante ponto turístico do estado, frequentado durante todo o ano por diversos turistas ansiosos por imergir na rica história e legado deixados por Zabé", descreve Ferdinando, para quem a figura de Zabé "é um dos grandes motores do turismo".
Pelas contas de Josivane, o espaço dedicado à artista recebe, anualmente, cerca de dois mil visitantes, algo em torno de 166 pessoas por mês, número insuficiente para lotar um dos tantos teatros que Zabé lotou com suas concorridas apresentações.
Com tantos filhos essenciais para a música popular, a Paraíba ainda se perde em títulos, mas falha em ações, assim como no caso de outro paraibano que tampouco teve um centenário à altura, em 2019.
Até hoje, Jackson do Pandeiro se resume a um pandeiro gigante na entrada de sua cidade natal e um memorial com acervo tímido, em Alagoa Grande, e uma estátua numa praça de Campina Grande. Na Paraíba, fazer turismo em busca das histórias do músico que fez rima sem perder o fio é um quebra cabeça de atrativos dispersos que o turista nem sempre está disposto a montar.
Mas a aridez agressiva daquelas terras e as contradições das políticas públicas não endureceram Zabé da Loca.
- Comadre, eu acho que eu vi uma onça.
- Ó eu com medo dela.
('Zabé Sabe' - Cabruêra)
Mesmo quando Zabé "não tinha quase nada para pôr no fogo para comer", como lembra Josivane, tudo eram risadas arreganhadas, como no diálogo acima no álbum 'Samba da minha terra' (2004), da Cabruêra.
"Eu nunca ouvi Zabé reclamar de nada. Ela tinha sabedoria sobre o mundo", conta.
Com bronquite crônica ("culpa do pife", como ela dizia) e com problemas decorrentes do Alzheimer, a artista faleceu no dia 5 de agosto de 2017, aos 93 anos.
"Vamos passear?", tentei, em outro momento da minha visita.
"E é agora", respondeu Zabé, sempre pronta para tocar 'pife' noutros terreiros de algum planeta de seres divinos.