Até conseguir tomar a iniciativa de escrever esse texto foram longos anos de solidão e de tentativas de fugir de mim mesma. Não consigo lembrar quando comecei a ter restrição alimentar. Na verdade, a minha sensação é de que sempre tive um paladar difícil ao longo dos meus 36 anos. Segundo a minha mãe, só não fui assim durante os quatro primeiros anos de existência.
Em primeiro lugar, gostaria de dizer a vocês que eu não como nada de verduras, legumes e frutas. Quando digo nada, é nada mesmo. Se tiver um trequinho verde no prato, eu vou tirar; se tiver uma semente de tomate, vai me dar nojo e não vou mais ter vontade de comer aquele prato.
Por exemplo, sou sempre a pessoa que pede o hambúrguer sem salada. Infelizmente, não são poucas as vezes que o pedido vem errado e preciso retirar. Para mim, o simples fato de ter de entrar em contato com esses alimentos já causa uma trava na garganta. Pode ser o hambúrguer mais delicioso do mundo, mas ele não terá mais a mesma graça. Se eu desconfiar que um simples salgado pode ter tomate, esquece. Embrulha o estômago.
A primeira reação das pessoas - e talvez de vocês que estejam lendo também - é pensar: ‘Nossa, como essa menina é fresca!’ Por muito tempo eu também me achava fresca, me cobrava muito e sofria ainda mais por simplesmente não conseguir sentir prazer em comer alimentos consagrados mundialmente como saudáveis.
Como uma mulher gorda, já fiz inúmeras dietas ao longo da vida. Tomei vários medicamentos, de sibutramina a Ozempic. Esse último virou o ‘queridinho’ de quem desejar emagrecer. Eu passava muito mal, muito mal mesmo. A resposta do médico: ‘Isso é bom, sinal que tá fazendo efeito’. Sério? O preço é passar o dia vomitando? Não, eu não consigo.
Profissionalmente, sou uma mulher realizada. Meu trabalho é reconhecido, já realizei os meus maiores sonhos da profissão e sigo querendo mais. Porém, não foi uma, nem duas vezes que me perguntaram: ‘Já pensou onde poderia chegar se fosse magra?’. Será que se eu perder peso vou ficar mais inteligente e não sabia disso? Pois é, ainda gera tabu ser fora dos padrões aceitáveis pela maioria para aparecer no vídeo.
Mesmo com esses comentários, eu fui em frente. Apresentei lives, fiz vídeos para redes sociais e muito mais. Tive vergonha? Tenho que confessar que raramente vejo algo no ar depois de pronto. Não gosto nem de me escutar. Ainda não aceito meu corpo como ele é, mas já não o odeio como antes.
Apesar de me amar um pouco mais, ainda não me amo o suficiente para ter facilidade para me relacionar. Me sinto inferior e tenho dificuldade de aceitar que posso ser desejada pelos homens. Afinal, quantas vezes você já não escutou comentários gordofóbicos nas rodas de conversa ou sentiu que estava aquém por não ser magérrima?
Todos esses anos de privação foram causando mais e mais restrições ao meu paladar. Comecei a ter dificuldade para me alimentar até do meu junk food. A solução? Respeitar meu tempo e conseguir olhar para essa questão após muito tempo de terapia.
Fiquei por anos com o telefone de uma nutricionista comportamental indicada pela minha psiquiatra. Demorei para fazer contato. Pensava: ‘Lá vai ela querer impor um monte de coisa, falar o que eu tenho que comer, quando eu simplesmente não consigo. Quando alguém vai me entender?’. Marquei uma consulta online na pandemia, me apaixonei pelo trabalho dela, mas ainda não estava pronta para abrir questões tão íntimas. Sempre que possível, minha terapeuta lembrava dela e perguntava: 'Por que não retornar?'.
Um tempo depois, participei de um encontro, promovido por ela, para mulheres e profissionais da nutrição, com foco nos transtornos alimentares. Naquele ambiente, comecei a sentir mais acolhida. Ainda não era fácil. Me sentia mal porque na mesma época ainda tentava emagrecer pelo Ozempic. Isso fazia com que eu me sentisse uma farsa.
Foram necessários mais três anos (de muita terapia) para que conseguisse aceitar que a Aline queria mesmo aquele acolhimento, não as promessas emagrecedoras milagrosas. Veio uma nova consulta. Muitas angústias, medos e choro reprimido. Tímida, confessei que preferia ser um caso de bulimia ou anorexia, por achar que seria mais fácil encontrar a cura. Afinal já tinha certeza de que meu caso não era uma frescura e sim, doença.
No único momento de repreensão, Marcela virou e disse: ‘Não, você não queria ser bulímica ou anoréxica. Você precisa de um nome para o que você tem? Eu te dou: você tem TARE (Transtorno Alimentar Restritivo Evitativo)’. Talvez ela nem saiba até hoje, mas aquilo causou um alívio tão grande. Sim, não sou fresca. Tenho um transtorno e tenho como tratar.
Esse processo começou lá para maio do ano passado. Sabe quantas vezes eu tive que me pesar nas consultas? Zero. Sabe quantas dietas tive que seguir? Zero. Minhas roupas estão mais largas, mas isso nem é o mais importante. A minha grande vitória é ter tido vontade de experimentar uma couve junto com a feijoada, a comer um arroz com brócolis, omelete com espinafre... Tudo em pequenas quantidades, não sempre, mas no meu ritmo.
Vamos juntas, no meu tempo, entendendo se a repulsa está no cheiro, na textura ou qualquer outra lembrança. Sou praticamente um bebê na introdução alimentar.