Nasci e fui criada na divisa entre Belo Horizonte e Ribeirão das Neves. O terreno da minha casa estava tanto na avenida principal, José Maria da Costa, como na Rua Cinco, na lateral. Isso significava mais do que ter dois endereços: a avenida pertencia à Ribeirão das Neves e a rua fazia parte de Belo Horizonte. Quem morava em Neves não era bem-visto e tudo era muito mais precário. Esse fato gerava confusão e crise de identidade.
Porém, o bairro Mantiqueira, em Belo Horizonte, é periferia também, diferenciada apenas pelo status de pertencer à capital. Citar meu endereço na escola rendia comentários, e para não dizer que eu morava no final do Mantiqueira e no início do bairro Pedra Branca, falava “faixa de Gaza”. E ninguém perguntava mais.
No início dos anos 1980, a região era quase deserta e os primeiros moradores erguiam seus barracos. Não tinha nenhum comércio. Meus pais foram pioneiros. Fizeram uma pequena mercearia com prateleiras de tábuas e porta de pau, amarrada com arame. Não havia muita mercadoria, as compras eram feitas de acordo com a demanda. E me recordo: o que mais vendia era pinga, até que o local virou um bar. Esse foi meu primeiro contato com o empreendedorismo. Ainda sem saber ler e escrever, eu desenhava os fiados na caderneta com risquinhos.
A região era estratégica para o comércio. Atendia outras comunidades da redondeza, como o Landi e suas três seções, e um lugarejo apelidado pela minha mãe e suas amigas de Mangue Seco, por causa da novela Tieta, que fazia sucesso na época – hoje, é oficialmente o bairro Esplendor.
Comércio cresceu com o passar dos anos
Com o tempo, outros moradores começaram a investir em pequenos comércios. Mas os botecos vieram antes de todos. Em frente à nossa casa, do lado de Ribeirão das Neves, abriu o Bar do Zé Bigode, que faleceu há cinco anos por causa da bebida. Logo abaixo, o Bar do Tião, hoje arrendado para Nivaldo Gonçalves, que mantém as características do antigo dono.
Até os clientes são os mesmos, pessoas que eram jovens nas décadas de 70 e 80, que se reúnem para beber e prosear. Ao questionar sobre onde anda o Tião, um deles responde: “seu Tião mudou, foi para longe, mas, mesmo assim, vem aqui todo mês receber o dinheiro do aluguel, pessoalmente. Ele faz questão”, conta.
O bairro Mantiqueira também cresceu muito. A via que o separa da capital agora é a Rua Joaquim Abel Coelho – até o quarteirão da antiga Rua Cinco, atual Benedito Anastácio Aguiar, pertence à Belo Horizonte. Atualmente, toda a área da casa onde morei é registrada em Ribeirão das Neves, bairro Pedra Branca, Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Xará, do comércio de bebidas
Depois do final da antiga linha de ônibus 2255, Mantiqueira, havia um bar com o nome Cê Ki Sabe. Atualmente, no local funciona uma distribuidora de bebidas, e o dono é o mesmo, Adair Alves, 53 anos, conhecido como Xará. Ele fundou o bar aos 19 anos e tocou até os 25. Depois, trabalhou por 27 anos em uma empresa multinacional, no ramo de mineração.
Demitido, resolveu retomar o comércio e inaugurou a distribuidora. “Eu resolvi continuar com o nome Cê Ki Sabe por causa da tradição, o pessoal antigo lembra e comenta, isso ajuda bastante”, explica Adair.
Ele acrescenta que a preferência pela expressão vem da infância, quando ouvia as pessoas fazerem convites e receberem “cê qui sabe” como resposta – geralmente, quando um chamava o outro para ir ao bar.
Xará tem dois filhos, Juan Henrique Rabelo Sales, 22 anos, e Kayke Emanuel Alves, 19 anos, que ajudam no comércio e têm planos para dar prosseguimento ao ganha pão da família.
Nosso barraco virou o maior sacolão da região
Apesar de Belo Horizonte ser reconhecida oficialmente pelo IBGE como a capital nacional dos bares, nem tudo é sobre isso. A antiga Avenida José Maria da Costa é predominantemente comercial. Nela funcionam padarias, lojas de roupas, supermercados, lojas de móveis, de utensílios, salões de beleza, drogarias, depósitos de materiais de construção e, claro, bares – todos os empreendimentos no plural, pois, na mesma avenida, um concorrente está em frente ao outro.
No local onde era nosso barraco, funcionam dois grandes comércios. Um deles é o Sacolão ABC Quali +, funcionando desde que vendemos a propriedade, em 1999. O gerente é Nilson Pereira de Almeida, 57 anos. Ele diz que o estabelecimento é o maior do tipo na região. “Aqui melhorou demais, virou referência. A felicidade do Assis é isso aqui”, fala Nilson sobre o amigo que comprou o imóvel do meu pai.
Nilson relembra como era complicado ter dois endereços. As correspondências chegavam com o nome da avenida José Maria da Costa no bairro Mantiqueira, ao invés de Pedra Branca. Eu também informava o endereço dessa forma, por achar mais bonito. E, até hoje, conversando na região, notei que os moradores fazem questão de falar que residem no bairro Mantiqueira, em Belo Horizonte.
Do outro lado do meu antigo lar, foi construída uma igreja evangélica, que funcionou por vinte anos, até que o dono da rede de frigoríficos Boi do Dia conheceu o imóvel, achou o ponto interessante, fez proposta e alugou. “Meu patrão achou o lugar acessível e bem movimentado”, diz o gerente Wellington Gilberto, 50 anos.
Ele trabalha na área de açougue desde criança e pretende ficar por muito tempo no bairro, que também chama de Mantiqueira. “Gosto daqui, gosto do pessoal, gosto do Mantiqueira e da clientela. Não tenho nada a reclamar.”