A favela sempre foi um local de empreendedores desde o seu surgimento. Em cada beco, viela, ou na rua principal, há sempre alguém que já tem um empreendimento ou está começando um. E a gastronomia é algo em que muitos moradores preferem apostar, seja numa pequena vendinha ou em casa mesmo, vendendo em sua porta.
A "tia do salgado, do lanche ou da quentinha", a "moça do doce ou do sorvete", o "tio do pastel ou do suco", e por aí vai. Todos os lugares conhecidos e famosos dentro da comunidade e que acabam sendo pontos de referência para muitos moradores na hora de informar seus endereços.
Porém, independente do empreendimento de cada uma dessas pessoas, todas têm algo em comum. E não é só o sonho de ter um negócio próprio, trabalhar por conta própria, mas também ter uma renda extra ou única para sobreviver, para ajudar no sustento de suas casas e famílias.
A maioria dos empreendedores da favela começa a empreender após perderem seus empregos e a necessidade os leva a investir em algo, mesmo que seja pequeno. Se vai se tornar um empreendimento grande, que ultrapasse as fronteiras da comunidade, já é outro assunto. Para eles, o importante é começar a botar as mãos na massa, mantendo o foco, sem desistir.
Mas será que todo morador de favela que empreende pretende ficar com seu comércio apenas dentro da comunidade, ou quer alçar voos mais altos, ultrapassar todas as barreiras que os cercam, para chegar a outros lugares? Para obter essa resposta, fomos conversar com o empreendedor Daniel Félix, criador da marca e rede de restaurantes Outbêco. O empreendimento que surgiu dentro da Favela da Pedreira, no bairro da Pavuna, hoje está presente em vários bairros da cidade do Rio, em várias cidades do estado, e nas principais capitais do Brasil.
"Eu era franqueado do Wizard, curso de inglês famoso, e estava em um evento, um desses coquetéis de gente fina, e alguém me falou: 'já imaginou, Daniel, aquele povo favelado seu, aqui num lugar tão bonito como esse?' Ele me conhecia e conhecia a minha história. E aí o assunto chegou às vias de fato, a gente acabou brigando mesmo. E, enquanto eu ia em direção a ele, ia pensando: 'é verdade, o povo da comunidade merece um restaurante, um empreendimento que seja bom, que tenha nível, que tenha uma comida de qualidade'. Daquele trágico incidente, surgiu a ideia de um restaurante nas periferias".
Por causa do preconceito sofrido, ou do "incidente trágico", como o próprio Daniel Félix chama, surgiu a ideia de empreender de uma forma diferente dentro da favela, criando não só um restaurante, mas uma marca que fosse conhecida dentro e fora da comunidade. E, mesmo sem saber como iria se chamar seu novo empreendimento, em 2020, toda a estrutura de como seria o restaurante já estava definida por Daniel e seus sócios. O nome, ele nos conta, foi sugerido por seu filho, que passava pela mesa de reunião em que eles estavam.
"O nome Outbêco surgiu, na verdade, em 2020. A gente já tinha tudo determinado: como seria, o formato, o formato de franquias, enfim. E meu filho, passando pela nossa mesa de reunião - e nós não sabíamos o nome ainda - meu filho passando, disse: 'ué, gente, não vai ser uma comida igual a do Outback, não vai ser na favela? Outbêco, tá decidido'. Eu e meus sócios morremos de rir e acatamos a ideia com muita alegria".
Daniel, que é professor, começou a empreender no ano de 2009, em uma franquia de curso de inglês. Mas, antes disso, ele lecionava em cursinhos preparatórios, dando aulas de língua portuguesa e espanhola. O mesmo diz que sempre acreditou que seu empreendimento alcançaria o sucesso que está tendo hoje, mas não imaginava o tamanho da velocidade com que aconteceria, em apenas dois anos de existência.
A tamanha velocidade com que o empreendimento se expandiu surpreende muito, já que o Brasil está mergulhado em uma crise econômica sem precedentes desde o ano de 2014. Crise esta, que segundo especialistas econômicos, ainda não dá para vislumbrar um fim. Porém, a mesma, que foi agravada em 2020 pela pandemia de Covid-19, fez com que milhares de cidadãos brasileiros começassem a empreender. Com um número recorde de desempregados e a escassez de emprego, muitos viram no empreendedorismo a única alternativa para sobreviver.
Neste mesmo período, Félix foi mais um cidadão brasileiro a dar início a um empreendimento. E em plena crise econômica e sanitária ele começou a projetar sua rede de restaurantes, mesmo sabendo de todos os riscos que estava correndo, o que para o empreendedor não era um empecilho. Quando perguntado sobre como é ser um empreendedor de sucesso no Brasil, em plena crise econômica, Daniel nos dá a seguinte resposta:
"Empreendedor no Brasil já está subentendido crise, é muito difícil empreender no Brasil. É muito difícil mesmo. É por isso que eu precisei me reinventar. A grande questão do empreendedorismo no Brasil é essa, se reinventar. E para isso, eu preciso, nós precisamos, o empreendedor precisa ter a humildade de ouvir as pessoas que estão ao redor… Para que possa juntar ideias, e aí formar um novo parâmetro, uma nova ideia, por assim dizer. E esse se reinventar todo dia tem que ser uma rotina padrão na cabeça do empreendedor", afirma.
Ter a reinvenção como "rotina padrão" para driblar a crise é o lema de Daniel Félix, que é cria de uma comunidade na região de Pavuna. Ele acredita que empreender na favela é algo incrível, devido às necessidades que existem por lá.
"A favela é sensacional, é um lugar incrível para se empreender pelo número de pessoas, pela quantidade de pessoas que existem lá. E pela necessidade que as pessoas de lá têm das coisas. Alimentação, vestimentas, enfim, uma série de coisas que existe a falta, que essas pessoas precisam e querem que esteja lá, naquela região deles, no núcleo deles".
Por ter vivido muitos anos dentro da favela, o empreendedor diz saber exatamente da carência que há lá dentro.
"Eu vivi muitos anos em comunidade e sei exatamente da falta que faz uma agência bancária… Essas lojas que vendem roupas com preços mais acessíveis, as pessoas gostariam de ter estes núcleos lá. Restaurantes bons, comida japonesa, comida tailandesa, comida árabe, fast foods. A gente sonha com isso lá, e por que não? Essa é a grande pergunta do cidadão da periferia. Por que não desenvolver essas ideias dentro da comunidade?”
Por ser professor, Daniel Félix já pensa, junto aos seus sócios, em voltar a investir em educação, criando franquias de cursos de idiomas dentro das favelas, com preços acessíveis para os moradores. Ele afirma que pretende criar uma holding com várias marcas, de vários setores do comércio, incluindo a educação.
Para Daniel, educação é algo primordial, e aponta que faltam cursos de idiomas dentro das comunidades. O professor afirma que seria mais viável ensinar a língua espanhola, por sermos um país cercado por outros países que falam o espanhol. Para ele, é possível viabilizar essa oportunidade aos moradores.
Porém, o empreendedor fala em investir no ramo da educação, não só em cursos de idiomas, mas também em pequenos cursos técnicos e tecnológicos, como sugerem seus sócios. O mesmo afirma que as crianças da comunidade têm o mesmo entendimento em tecnologia que as de classe média. A diferença entre elas são os recursos que possuem. Ele ainda aponta que as crianças da favela são famintas por essas oportunidades e, sendo assim, já estão desenvolvendo ideias para criarem cursos com preços populares.
O professor, que teve a ideia de empreender montando seu restaurante dentro da favela da Pedreira, fala que ainda sente preconceito vindo dos grandes empreendedores das classes média e alta. E que isso está longe de acabar.
"Eles duvidam muito da capacidade de alguém que veio da favela de pensar como eles pensam, ou mais e melhor do que eles pensam (...) eles se sentem insultados de alguma forma, mas, é claro, que nem todos. Eu conheci o dono do Spoleto, Eduardo Ourivio, que é um cara genial, super do bem. Que me dá os parabéns a torto e a direito, mas, é uma exceção. A maioria dos empreendedores que estão na classe média e classe alta deste país tem esse preconceito".
E ainda, segundo ele, esperam que ele fale apenas sobre violência, drogas e de temas que são abordados diariamente pela mídia.
"Eles esperam que eu fale de violência, de drogas, de submundo de gibis, de comics, que na verdade não é. São pessoas que trabalham e que têm sonhos, que têm ideais, e que só falta a oportunidade de realizar aquilo que querem", ressalta.
Para Daniel Félix, o Outbêco é um pequeno passo para os milhares de sonhos que existem dentro das comunidades, independente de qual seja o empreendimento. Para ele ,é possível empreender de forma igual e justa, dividindo os lucros, mas infelizmente os empreendedores do Brasil ainda não têm esse senso de justiça.
Daniel afirma não ter tido problemas com a famosa rede de restaurantes, Outback, por usar de forma genérica seu nome. Mas diferentemente da rede Spoleto, que apoiou logo de início seu amigo Nuno, que tem uma barraquinha no centro da cidade chamada Spobreto, a marca estadunidense o procurou, segundo ele, de uma forma veemente para saber do que se tratava. Após explicar que se tratava de favela, nada tinha a ver com Outback, que o público era bem diferente, entenderam. Porém, fizeram algumas exigências e desde então passou a lhe dar todo apoio necessário.
"Eles nos fizeram três pedidos: trocar a trad french, a nossa logomarca era igualzinha a deles, nós acatamos. Pediu também para trocarmos os nomes dos pratos, apesar de serem iguais e terem os mesmos nomes, os deles são patenteados. Nós trocamos, apesar de serem os mesmos pratos, agora são outros nomes. E nunca colocar num shopping de grande expressão. Isso foi um pedido informal, pois, ao meu parecer, isso seria uma afronta. (...) Mas essa não é minha pretensão, colocar num shopping de renome, pois não é o nosso público. Depois disso, tudo que eles nos pediram, nós acatamos, e seguimos aí, em bons ventos agora. O Outback tem sido sensacional… Nos dão apoio, tem sido um relacionamento bom".
Com isso, a rede de restaurantes Outbêco segue abrindo franquias em diversos locais do Rio e do Brasil. Criando diversas vagas de empregos diretas e indiretas. Dando oportunidade a milhares de pessoas que vivem dentro das favelas. Mostrando ao mundo empresarial que empreender dentro da comunidade é possível e é também um grande negócio.
Para Daniel Félix, o sucesso de seu empreendimento se deu pela empatia do público. Mas, é claro, curiosidade devido ao nome similar ao do Outback. O mesmo diz que em um primeiro momento, as pessoas acham graça, satirizam, fazem algumas piadas, mas aprovam a ideia. Percebem que a qualidade do Outbêco não difere do restaurante estadunidense. E para ele, marcas genéricas já estão se tornando uma tendência no mercado.
"A primeira sensação é justamente essa, de achar engraçado. Já vi gente tirando foto, fazendo filmagem, parando em frente e fazendo graça, fazendo piada sobre, esse é o primeiro impacto. Mas é claro que a qualidade da comida também conta muito. O cliente percebe que é uma comida muito parecida, se não igual a do Outback. E uma coisa mais importante é que o público percebe que há um alavancamento de novos empresários, que eles podem empreender com pouquíssimo dinheiro e lucrar bastante dinheiro. Isso por si só já é muito legal".
Empreendimentos de alto nível e de qualidade: Daniel acredita que seja isso que a favela precisa. E precisa ainda mais ter oportunidades para seus moradores. Para ele, a única forma também de combater a violência e o tráfico de drogas dentro das comunidades é oferecendo algo diferente de tudo que já lhe foi oferecido. Olhando para todos de forma igual, sem distinção.
O empreendedor conta que é procurado por muitos, que ele chama de ex-trabalhadores do tráfico, pedindo uma oportunidade de trabalho, com base no seu exemplo. O mesmo diz que os emprega sem problemas, pois acredita que muitos só precisam de uma oportunidade para buscar um novo caminho. Segundo ele, o Outbêco também é um projeto social dentro das comunidades.
O mais novo empresário brasileiro afirma que muitos empreendedores, com a mente mais aberta, já pensam em investir dentro das comunidades, tendo como exemplo o sucesso de seu restaurante. Talvez esta seja também mais uma conquista de sucesso de Daniel, que em tão pouco tempo ultrapassou as barreiras da favela e se expandiu pelo Brasil com sua nova forma de empreender.