Uma família indígena faz artesanato; uma senhora cuida sozinha do restaurante; um técnico em eletrônica sobrevive consertando celulares; o barbeiro, sem empresa aberta, agradece o “dom divino”; o salgadeiro e a esposa conseguiram estabelecer o negócio, que funciona na favela Real Parque e fora dela. Nenhum deles está na Expo Favela Innovation, e nem todos estão interessados.
É do terceiro andar do World Trade Center, em São Paulo, que se vê melhor a favela Real Parque, exatamente à frente, do outro lado do rio e da marginal Pinheiros.
No andar mais alto dos três ocupados pela Expo Favela Innovation, atrás do balcão de lanches, a parede de vidro permite visualizar os prédios populares do Real Parque.
A Expo Favela Innovation é “uma feira de negócios, cujos expositores são empreendedores da favela”. O Visão do Corre, então, atravessou o rio e a marginal Pinheiros e foi conhecer as iniciativas empreendedoras do Real Parque.
A realidade encontrada é mais complexa, variada e contraditória do que os negócios mostrados na Expo Favela Innovation.
Empreendedorismo como sobrevivência
Em um prédio de apartamentos populares do Real Parque, a família de Ivone Pankararu, descendente indígena pernambucana, faz colares, brincos, pulseiras. Ela, o marido, o filho, a irmã e a sobrinha produzem e vendem. Vão a feiras, escolas e eventos.
O sustento da família é tirado do artesanato, complementado com outros trabalhos. O filho de Ivone é auxiliar administrativo; a irmã faz faxina; o marido está desempregado.
Apesar de ter registro como Microempreendedora Individual (MEI), “acabei me embanando toda. Parcelei a dívida, estou pagando, preciso voltar a dar nota fiscal”, conta Ivone.
Ela começou a fazer o cadastro da Expo Favela Innovation, mas perdeu o prazo. “Eu nem sabia que podia me inscrever. Não deu tempo de fazer o vídeo”. Ela trabalha com artesanato há dez anos, mas ainda não tem certeza se conseguirá participar algum dia do evento que acontece do outro lado do rio Pinheiros.
“Eu vejo gente lá que está bem avançada, não é como a gente. Por isso, se eu fizesse a inscrição, acho que não aprovaria. Eles querem mostrar uma realidade que não é a nossa”, diz Ivone Pankararu.
“Abri aqui com quatrocentos reais”, conta barbeiro
A rua Paulo Bourroul é o centro comercial do Real Parque. Várias portas dão entrada para quitandas, mercadinhos, lojas de bebida, salões de beleza e barbearias, como a de Ednaldo Antônio da Silva, 50 anos.
Ele veio de Pernambuco e sempre cortou cabelo. “Comecei aos 17 anos, na raça, nasci com o dom”. Abriu a barbearia há três anos, trabalhava todos os dias, agora folga aos domingos. “Perdi uma namorada por causa disso”.
Ele recebe por maquininha e PIX, mas não tem empresa aberta. “Não tenho nada, é avulso. Mas graças a Deus, não fico um dia sem trabalhar. Vivo disso aqui”. Ele gostaria de ter apoio burocrático, acesso a financiamento, “seria muito bom, quem não quer crescer?”.
Sobre a Expo Favela Innovation, “nunca ouvi falar, não sei nem do que se trata”.
Dona de restaurante trabalha sozinha
Josefa Francisca da Silva, 63 anos, faz tudo no seu pequeno restaurante, de quatro mesas, que existe há dez anos. “Trabalho sozinha, com funcionário dá mais trabalho”.
Burocraticamente, seu negócio está um pouco mais organizado do que o da família indígena produtora de artesanato e o do barbeiro. Jô tem contador e fornece nota fiscal.
Ela não sabe onde fica a Expo Favela Innovation. “Nunca fui”. Também não está interessada em conceitos como “empreendedorismo”. “Nem sei direito o que é. Será que é bom? O que eu digo sempre é: nunca desista. Tenta, vai e faz”.
A vida de Jô se divide entre o restaurante e a neta, que cria após a morte da filha, com câncer. Não sabe se vai conseguir aposentar, mas pretende trabalhar “até quando Deus der força”.
“É pra inglês ver”, diz técnico
Antes que o repórter termine de se apresentar, David dos Santos dispara: “A Expo Favela não me interessa. A gente que é empreendedor, quase não tem tempo. Eu vejo que é um evento muito midiático. Quem dá entrevista, parece selecionado a dedo. Não tem nada a ver com a favela, é o boy de comunidade”, resume.
Ele não tem tempo para dar entrevista, precisa buscar a filha. Antes de sair, conta que a loja está indo para vinte anos. Já teve 16 máquinas para videogame, mas hoje quase todo o faturamento vem da manutenção de celulares.
O empreendedor não tem tempo, outros sequer querem falar com a imprensa, como a proprietária de loja de artefatos para festas, o dono de um açougue, o feirante e duas cabeleiras e manicures.
Estão desconectados da mídia no sentido comercial. Seu mundo dos negócios é na rua, no dia a dia, em contato com os clientes, muitas vezes vendendo hoje para se sustentar amanhã. Mas com o salgadeiro Sérgio é diferente.
“Aqui é empresa”, diz salgadeiro de sucesso
No Real Parque, uma favela reurbanizada, há negócios que extrapolaram os limites da comunidade. É o caso da Fábrica de Salgados Fritos e Forno, do casal de origem cearense Carlos Sérgio de Souza Machado e Irisvânia Maria de Oliveira Souza.
“Já passei de MEI, ME, aqui é empresa. Cheguei a ter sete funcionários. Hoje, só hoje, vou fazer dois mil salgados”, conta Sérgio. Ele vende coxinhas, esfiha, bolinha de queijo, entre outros. Atende no balcão, por encomenda, em aplicativos e posta fotos na internet.
Na porta, um Celta da empresa. “É o tanque de guerra”, brinca Sérgio. O casal chegou a São Paulo “com a cara e a coragem”, e ainda guarda a panela sem cabo com a qual começaram o negócio.
“Eu não sou mais empreendedor, não estou começando, sou empresário”. A esposa, emocionada, concorda. Eles têm cinco máquinas de fazer salgado, dois fornos industriais, entre outros utensílios e equipamentos profissionais.
Sérgio tentou por duas vezes se inscrever na Expo Favela Innovation. Não sabe porque não deu certo. “Nunca mandaram ninguém aqui, nunca vieram me conhecer. Adoro esses negócios, quero participar, mandei os documentos, mas nunca fui chamado”.