Adélia Prates, 75 anos, tem uma vida repleta de lutas. Nascida em Valparaíso, no interior de São Paulo, ela lembra que a primeira luta ocorreu depois de nascer, pois não foi aceita pela mãe, Ana, por ter nascido no gênero feminino. O pai, Deli, de origem indígena, proibiu todos os sete filhos (dois irmãos e cinco mulheres) de frequentarem a escola.
O casal vivia em constantes brigas e Adélia presenciou diversos episódios de violência doméstica. “Minha mãe estava grávida e meu pai batia nela. Eu fugia e dormia debaixo das parreiras de uva e de maracujá para me esconder”, lembra.
Em uma ocasião em que saiu de casa, o pai foi buscá-la na mata e, quando a pegou no colo, a menina estava paralisada e com muita febre. Era meningite, doença que a deixou imóvel na cama até os 5 anos de idade. Para o tratamento, o pai a levava em um curandeiro que fazia remédios caseiros com ervas e recomendava que ela tomasse leite de égua, de jumenta e de cabra.
Aos 7 anos, veio o divórcio dos pais e a mãe se mudou com ela e os irmãos para a Bahia. A família passa a morar na casa do avô materno, Manoel de Félix, que era ex-escravizado. “Ele tinha marcas de chicote e mostrava para todo mundo”, lembra.
Para ter renda, a mãe lavava muitas roupas para fora e Adélia começou a trabalhar como doméstica para ajudar os irmãos. Ela não recebia salário, apenas alimentos em troca dos serviços. Muito pequena, ela começou a questionar por que os patrões tinham uma vida de luxo, enquanto os irmãos e a mãe estavam fracos por conta da fome.
“Em um dia de festa, peguei várias comidas, passei entre eles e falei: ‘estão vendo isso aqui? Não é roubado, vocês não me deram, mas vou levar mesmo assim. Na minha casa não tem nada para comer. Meus irmãos estão comendo carne seca com farinha e rapadura. No fim do mês eu pago”, relembra.
Depois ela passou a exigir um salário em troca do serviço prestado para ter dinheiro para sustentar a casa. Aos 19 anos, se mudou para São Paulo para trabalhar como cozinheira no Guarujá, no litoral do Estado, e posteriormente continuou na mesma função em uma mansão em Higienópolis, no centro da capital.
Por não saber ler e escrever, ela contava com a ajuda da patroa para ler os livros de receitas, porque só sabia identificar os números. Decidiu retomar os estudos na Casa de Santa Zita, instituição localizada no mesmo bairro, onde também aprendeu a fazer tricô e crochê.
A ditadura militar e o início no Grajaú
Em 1972, Adélia vai trabalhar na casa de um homem estadunidense casado com uma brasileira que tinha dois filhos. Ela estava no local há seis meses quando repentinamente homens fardados invadiram a casa em busca de informações.
“Me falaram: ‘moça, não vamos fazer nada com vocês’, mas reviraram tudo, até a cama das crianças. Perguntaram sobre o meu relacionamento com os patrões, removeram os fios do telefone e colocaram uma luz azul. Depois que saíram, eles me falaram para ficar quieta”, lembra.
Quando a patroa chegou, Adélia estava chorando assustada com as crianças no quarto. Ela lhe disse que não poderia ficar mais ali e voltou pouco tempo depois para os Estados Unidos. Sem entender nada sobre o episódio, a jovem leva o assunto para a sala de aula, onde as professoras explicam sobre a Ditadura Militar e o momento histórico que estavam vivendo.
Ainda no início da década de 1970, aos 25 anos, ela se casa pela primeira vez e o marido compra um terreno no Grajaú, na zona sul de São Paulo. “Eu queria ter filhos, mas não queria me casar. Fiz isso porque a minha mãe já era mãe solteira. Se eu não casasse, seria uma vergonha para ela”, diz.
Adélia perdeu a primeira gravidez, situação que a deixou extremamente deprimida. Depois teve três filhos: Ricardo, hoje com 47 anos, Flávio, 45, e Mauro, 41.
Quando chega ao distrito, que atualmente é o mais populoso da cidade de São Paulo, com cerca de 445 mil habitantes, os filhos ainda estavam na primeira infância. Só havia mato e a represa Billings chegava até a região da atual Bola Branca.
“Não tinha favela. Tinham garças, flamingos e uma lagoa limpa. Meus filhos jogavam pedaços de pão para os peixinhos”, conta.
Com o passar dos anos, os moradores locais soterraram parte da represa, construíram casas e um campo de futebol. Mas não existia luz e nem água encanada. Junto a outras mulheres, ela decidiu iniciar uma luta por melhoria na qualidade de vida.
A luta política
Tudo começou na Paróquia de Nossa Senhora Aparecida, a única igreja que existia no bairro na época. Era neste local onde as mães se reuniam para vender lanches, como bolo e patê, para ter dinheiro para comprar os sapatos dos filhos. Depois, elas se uniram para cobrar melhorias nas padarias e baixar o preço da carne.
“A gente queria uma melhora do nosso bem-viver, mas naquela época a gente era chamada de ‘mulheres malucas’. Por estarmos na luta, tivemos que sair do salão da igreja e alugar o nosso espaço”, conta Adélia.
O local se tornou a Associação de Mulheres do Grajaú – que até os dias de hoje promove cursos de empreendedorismo, facilita o acesso à saúde ginecológica e presta apoio jurídico para mulheres vítimas de violência. Adélia foi a primeira presidente da Associação.
Por terem inaugurado o espaço ainda na época da Ditadura Militar, o grupo era cauteloso durante as reuniões. “A gente discutia com a luz apagada sobre nossos direitos e quando a ditadura iria acabar. Quando fundaram o Sindicato dos Metalúrgicos [em 1980], a gente saía daqui com as crianças pequenas para lutar em São Bernardo do Campo”, afirma a ativista social.
Já no início dos anos 1980, as mulheres conquistaram a criação de uma creche no Jardim Somara e lutaram por moradias no Recanto da Alegria. Adélia também passou a dar aulas de manicure na região de Primavera-Interlagos, na Cidade Dutra, distrito vizinho.
“A ideia era ajudar as mulheres a fazerem o próprio dinheiro dentro de casa. Também lutamos por mais transportes de qualidade com elevadores para as pessoas com deficiência. As pessoas olham isso hoje e pensam que aconteceu do nada, mas todo o Grajaú foi construído através da luta das mulheres”, conta orgulhosa.
Em 1983, um episódio sombrio marcaria a vida da ativista para sempre: a irmã Delvita foi assassinada pelo companheiro, aos 30 anos. Muitos conhecidos levantaram rumores de que a morte se deu por conta do envolvimento político de Adélia, mas as investigações concluíram que ela foi vítima de feminicídio.
Mesmo fragilizada, ela entrou na Justiça para ser a responsável legal do único filho da irmã, Artur, que morreu recentemente aos 39 anos vítima da Covid-19. Na época, ela chegou a fazer um caderno de recortes com imagens para provar aos juízes que era a melhor pessoa para cuidar da criança.
“Parece que, após a morte dela, eu fiquei ainda mais forte. Aí nós fomos lutar para construir uma delegacia da mulher, porque fui muito maltratada na delegacia comum”, relata.
Devido ao caso de Delvita e de outras mulheres que estavam sendo assassinadas pela condição de serem mulheres, em 1985 foi inaugurada a primeira Delegacia de Defesa da Mulher, no centro de São Paulo.
Atualmente, Adélia olha para o passado e tem orgulho de tudo o que construiu até então. Em relação à luta pelo Grajaú, ela afirma que ainda há muito o que fazer na saúde, educação, acesso à cultura e, principalmente, em relação ao trânsito da avenida Dona Belmira Marin, uma das principais vias da região.
“Já estou ficando velha e a juventude deve continuar a minha história. Eu plantei a minha raiz e vocês vão continuar brotando”, finaliza.