Integrantes da Academia Brasileira de Letras do Cárcere (ABLC), recém-inaugurada, conversam com o Visão do Corre. Duas escritoras e quatro escritores, poetas e romancistas, de diferentes estados brasileiros, contam como se interessaram por literatura e falam sobre a importância de uma academia de letras para pessoas que passaram ou estão no sistema carcerário. Também respondem o que é literatura marginal.
A fundação da Academia Brasileira de Letras do Cárcere (ABLC), composta por detidos e egressos do sistema prisional, chamou a atenção para o ocupante da cadeira número 1, Marcinho VP. Preso desde 1996, é autor de três livros.
Os outros membros empossados na ABLC estão na rua. São vinte cadeiras, nem todas ocupadas. A de Márcio Nepomuceno, o Marcinho VP, tem Graciliano Ramos como patrono.
Gih Trajano e Amanda Karoline foram incorporadas após a fundação, em abril. As duas únicas mulheres da ABLC conversaram com o Visão do Corre, que também entrou em contato com quatro autores.
Conheça suas trajetórias.
“Cadeia não define quem sou”, diz Gih Trajano
A cadeira número 17 da ABLC, cuja patrona é Ângela Davis, está ocupada por Gih Trajano. Ela é de Suzano, Região Metropolitana de São Paulo, tem 47 anos e múltiplos dons artísticos: poeta, romancista, roteirista, palestrante.
Na prisão, num belo dia, chamaram-na para ouvir poesia, mas ela não queria. “Ainda mais sarau, uma frescura do caramba, falei que não ia”. Mas foi. E se surpreendeu, a ponto de ficar ansiosa antes dos encontros.
Em um deles, ouviu a frase que marca sua vida: “Coragem é todo passo dado na direção oposta daquilo que nós somos”. Livre, passou a participar de encontros poéticos na Biblioteca Mario de Andrade e no Sarau do Grito, tornou-se roteirista da série No Corre, começou a fazer palestras e escrever.
Está concluindo a trilogia de romances Quem Saberia Perder. “Descobri que tenho grande capacidade de imaginar gente. Estou me dando a segunda liberdade, a liberdade poética. Quando foi a última vez que me senti protegida? Com a literatura”.
Mais de 3 mil exemplares vendidos
“Eu não gostava da escrita, peguei gosto no presídio, foi com minha autobiografia, ainda presa. Era para ser publicado em 2020, mas a pandemia atrapalhou. Vi que faltava algo para falar, o sistema prisional, e fiz o segundo livro, que ainda não foi publicado. Estou fazendo um terceiro sobre reintegração”, conta Amanda Karoline, 31 anos, do Rio Grande do Norte.
Na solidão do presídio, havia pequena biblioteca, de onde a futura escritora emprestava uma obra por semana. A escrita foi naturalmente despertada pela leitura. Assim como Gih Trajano, sua companheira de ABLC, Amanda não quer ser resumida a ex-presidiária. “Minha história é sobre sobrevivência e amor-próprio”, frisa.
Morando em Parnamirim, vende seu livros nas praias de Natal, cidade vizinha. Segue o ofício do pai, vendedor. Comercializou mais de três mil exemplares da primeira obra, de mão em mão. Quer continuar escrevendo sobre violência doméstica. Ocupa a cadeira número 11 da ABLC, cuja patrona é Esperança Garcia.
“Faço simplesmente literatura”
Igor Mendes é professor e escritor. Foi um dos manifestantes processados e presos por participar nas manifestações que eclodiram no país entre 2013 e 2014. Da sua experiência no cárcere nasceu o livro de estreia, A Pequena Prisão. Também publicou Esta Indescritível Liberdade (2020, finalista do Prêmio Jabuti) e Junho Febril.
Ele ocupa a cadeira 14 da ABLC, que tem Malcon X como patrono. Sobre literatura marginal, gosta de lembrar que “a história da arte prova que os trabalhadores e suas lutas são fontes inspiradoras do que hoje se consideram clássicos. Ao retratar as camadas marginalizadas no meu trabalho, eu faço, ou busco fazer, simplesmente literatura”.
A dor e a magia da vida marginal
O poeta Edilberto José Soares é o sétimo filho de uma família pobre. A mãe, do lar; o pai, agricultor de subsistência, barbeiro, e aplicador de injeções do sítio Carnaúba, no sertão Paraibano. Aos quatro meses de vida, órfão de pai, foi tomado da mãe e registrado como natural de Nova Cruz (RN).
Muito jovem se envolveu na criminalidade e passa vinte anos na prisão. Nela forjou a identidade artística que passa a identificá-lo como O Poeta. Participou de duas antologias e lançou seu livro solo, O Último Grito da Poesia.
Soares ocupa a cadeira número 3 da ABLC, cujo patrono é Martin Luther King. “Academia vai expandir a literatura nas penitenciarias e prisões, levando apoio e foco aos escritores marginalizados”, acredita O Poeta.
Ele promove atividades culturais no Rio de Janeiro, produz outro livro de poesia e escreve sua biografia, O Último Sertanejo.
Literatura com voz autêntica e diversificada
Paulo Milhan é romancista, palestrante, roteirista e atua nos seus próprios projetos, especialmente na editora que criou. Por ela, publicou dois livros, além de quatro anteriores. Ocupa a cadeira número 5 da ABLC, que tem Marquês de Sade como patrono.
Natural de Andirá (PR), Paulo Milhan mora em Sorocaba, interior paulista. Para ele, a literatura marginal é uma expressão artística que emerge das margens da sociedade e desafia as convenções literárias. “É uma forma de resistência, superação e transformação”, crava.
Milhan considera que a fundação da ABLC “contribui para ampliar as vozes, estimular a leitura e escrita para encarcerados e egressos, enriquecendo a diversidade da literatura nacional”.
Literatura contra escravização da mente
A cadeira número 2 a ABLC, que tem Nelson Mandela como patrono, é ocupada por Sagat, rapper e escritor. Após 12 anos de prisão, escreveu O Bandido que Virou Artista e Amor Substantivo Feminino.
Ele acredita que literatura marginal é aquela que “busca fugir dos padrões acadêmicos em linguagens e abordagens”. Sagat conhece o sentido pejorativo do termo “marginal”, que “nada mais é do que estar de fora. Nesse caso, da Academia”.
Sobre a ABLC? “Significa representatividade, reconhecimento e referência para os demais, estimulando a leitura e a escrita em ambientes onde, infelizmente, a ignorância escraviza mentes”.