Nascida em um engenho no interior de Pernambuco e trabalhando em "casas de famílias" desde os 12 anos de idade, Vera Lúcia da Silva relata em livro a exploração do trabalho doméstico. Um documento que mostra a quantidade e a variedade de violências que se cometem contra quem lava, passa, cozinha e cuida dos filhos dos outros.
A história de vida da empregada doméstica Vera Lúcia da Silva não cabe neste texto. Mas está detalhada no livro que ela escreveu, narrando meio século de exploração em casas, apartamentos e empresas de Recife.
Ainda faxineira aos 62 anos, moradora do bairro Iputinga, ela está lançando Espanador não Tira Poeira: Memórias e Aprendizados de uma Empregada Doméstica. Por décadas, Vera viveu condições precárias de trabalho, humilhações, falta de direitos, acusações injustas e preconceito por ser mulher preta de periferia.
Os relatos são chocantes: comer sobras de comida estragada, ser impedida de usar os banheiros da casa, proibida de ir à escola. Apesar disso, ela estudou e proporcionou escola aos filhos, que fizeram faculdade e curso técnico. Uma é doutora.
Trabalhando como empregada desde os 12 anos
Nascida e criada em engenhos de açúcar no interior de Pernambuco, Vera começou a trabalhar aos 12 anos e veio para Recife, como empregada doméstica. Começou a estudar somente dez anos depois. Tinha um casal de filhos, e teria outra filha enquanto trabalhava e tentava se alfabetizar.
“Sempre quis estudar, mas as patroas não deixavam. Eu era louca para estudar, guardava livros, revistas. Era meu maior conflito”, conta. “Lembro de uma vez que chegou um telegrama dizendo que meu filho estava doente e eu não sabia ler. Isso me angustiava muito”.
“Eu fazia um bolo e só podia comer quando estava embolorando, mofado. Melancia ficando ruim, laranja, banana...” – Vera Lúcia da Silva
Vera frequentou aulas de educação para adultos, passou por várias escolas, assistiu Telecurso, teve reprovações, foi parando e retomando. Sentiu na pele a matrícula recusada por ser negra. " A primeira vez que ouvi falar de racismo. Eu era louca para aprender Biologia".
Aprendeu, concluiu o ensino médio com 35 anos, fez curso de Técnico em Lazer. “Eu era a aluna mais velha da turma, era como se fosse a mãe dos alunos”. Ainda não havia o projeto de escrever o livro, cuja escrita, que levou sete anos, rende outra história incrível e envolve mais uma mulher.
Aluna virou professora e reencontrou faxineira
Nos anos 1990, Vera trabalhou na Biblioteca do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Limpava os livros com a dedicação de quem reconhece o valor do que está manuseando.
Na época, Wedna Galindo era aluna de Psicologia. Dezenove anos depois, a aluna voltou à UFPE como professora. Reconheceram-se a Vera começou a fazer faxina no apartamento da docente. “A gente sempre conversou, eu gosto muito de conversar, moro só”, diz a professora.
Durante as limpezas, Vera contava “as situações de exploração, de humilhação. Me chamava a atenção que ela tinha uma postura crítica, reflexiva. Eu fiquei escutando, curiosa. Um belo dia ela disse se eu queria fazer o livro da vida dela, sobre as coisas que ela passou no trabalho doméstico”.
A história escrita por Vera e Wedna
Começou um processo de trocas que durou sete anos. Antes, durante e depois das faxinas semanais, faziam gravações e transcrições de áudios e vídeos; a professora escrevia e lia para Vera; ela revisava e escrevia também.
A faxineira diz que o livro é das duas, mas a professora está feliz, mesmo, com o processo de construção da obra. Segundo Vera, a patroa “tem a habilidade de escrever e eu, a vontade de falar. Aí, pronto”.
“Eu tive um problema sério no intestino, a médica disse na minha cara, claramente, que era porque eu comia comida velha” – Vera Lúcia da Silva
“Quando eu escrevia e lia com ela, percebi que frases longas não funcionavam, certos vocabulários também não. Ela saía corrigindo tudo”, conta a professora. “Eu dizia que algumas palavras as minhas amigas domésticas não iam entender. Foi feito um trabalho de formiguinha”, completa Vera.
O livro está pronto. Vera continua trabalhando como faxineira. “Eu gosto de fazer faxina, não gosto do comportamento das pessoas. Hoje eu trabalho em casas menores, tenho patrões mais conscientes”.
É melhor para todos, pois agora a faxineira sabe que pode contar histórias. E publicar.