Conheça o único museu de quilombos e favelas de Minas Gerais

Fundado a partir da organização da comunidade, Muquifu conta histórias periféricas e resgata valores ancestrais

26 out 2023 - 05h00
Aglomerado Santa Lúcia, periferia de Belo Horizonte, onde funciona o Muquifu, Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos, único em Minas Gerais
Aglomerado Santa Lúcia, periferia de Belo Horizonte, onde funciona o Muquifu, Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos, único em Minas Gerais
Foto: Alexsandro Trigger

O Muquifu, Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos, “é um museu incomum, resultado de um desafio e uma paixão, criado para derrubar alguns estereótipos e clichês e se opor à injustiça social”, explica o padre Mauro Luiz da Silva, religioso negro à frente da iniciativa que surgiu da organização da comunidade do Aglomerado Santa Lúcia, também chamada de Morro do Papagaio, periferia da capital mineira.

O Muquifu foi oficialmente inaugurado em Belo Horizonte 20 de novembro de 2012, dia da Consciência Negra. Três anos depois, foi transferido para a atual sede, na Igreja Estrela da Manhã, conhecida como Igreja das Santas Pretas. A capela está situada na Vila Estrela Santo Antônio

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O Aglomerado Santa Lúcia fica na região centro-sul de Belo Horizonte. É formado pelas vilas Estrela de Santo Antônio, Santa Rita de Cássia ou Morro do Papagaio, Barragem Santa Lúcia e Vila São Bento, também chamada de Vila Esperança, Vila Carrapato ou Bicão.

Os nomes são popularíssimos e revelam raízes histórico-culturais. Morro do Papagaio, por exemplo, é assim chamado porque muitos jovens subiam as encostas para empinar pipas, diversão que em Belo Horizonte tem o nome de “soltar papagaio”. Mas hoje há outras opções de lazer e cultura na região, um local bem plantado no chão, que surgiu da organização da comunidade, o Muquifu.

O Muquifu está localizado no Aglomerado Santa Lúcia, ou Morro do Papagaio, em Belo Horizonte. Comunidade se organizou para conceber o museu
Foto: Erlaine Gracie/ANF

Atualmente, conta com uma equipe de nove pessoas. Entre elas, o historiador Cleiton Gos, que atua há oito anos como educador do Muquifu e conhece bem as origens da comunidade. Ele relata que a Igreja do Rosário, do antigo Curral Del Rey, como era chamada Belo Horizonte, foi demolida para a construção da atual Rua da Bahia, no centro da capital, há 125 anos.

As populações que lá residiam foram expulsas e migraram para as vilas e favelas, como o Morro do Papagaio. “Foram abandonados embaixo do asfalto. Demoliram o Largo do Rosário, mas deixaram soterradas as pessoas que estavam enterradas no cemitério do Rosário”, conta o padre Mauro Luiz da Silva.

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Resistência histórica de mulheres e homens

Muito antes de ocupar a sede física, o Muquifu, que no dicionário significa barraco, existia nos anseios da comunidade. A junção dele à Igreja das Santas Pretas resgata a história da construção dessa capela, que foi iniciada por 14 mulheres da comunidade que buscaram, junto à diocese da cidade, um local para fazerem suas orações, na década de 1980.

Essa reinvindicação estava ligada à história de uma irmandade da Igreja do Rosário, que existia no Largo do Rosário, há mais de duzentos anos. Até a década anterior à mobilização das mulheres de fé, o Aglomerado Santa Lúcia era bem maior, mas muitas famílias foram retiradas para a formação do bairro São Bento, região nobre e privilegiada da capital.

Padre Mauro Luiz da Silva, envolvido na mobilização da comunidade para fundação e manutenção do Muquifu na periferia de Belo Horizonte
Foto: Divulgação

A história de formação das comunidades do Aglomerado Santa Lúcia faz parte de um processo de resistência de mulheres e homens, em sua maioria negras e negros, à brutal ação dos poderes públicos que buscaram impedir seu estabelecimento no território, desde o final do século 19.

Segundo o livro Muquifu – Histórias para Imaginar e Fabular, no local funcionava a Colônia Agrícola Afonso Pena, habitada por famílias negras desde, pelo menos, 1910. A partir dos anos 1940, passou a receber cada vez mais gente, em decorrência da intensificação da chegada de trabalhadores atraídos pelas oportunidades de emprego da cidade que se industrializava.

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Como o Muquifu começou

Com uma história de lutas das comunidades da região por dignidade e posse da terra, a trajetória que antecede a fundação do Muquifu tem um marco temporal importante no final da década de 1990.

Na época, jovens e lideranças ligadas à Igreja das Santas Pretas e às comunidades do Aglomerado da Serra se reuniram para dialogar sobre a violência que estavam vivenciando. A partir do ano 2000, os encontros deram origem ao movimento Caminhada Pela Paz, que se tornou tradição e acontece todos os dias 12 de outubro. O evento ressignifica a procissão de Nossa Senhora Aparecida.

Em seguida, os mesmos jovens, junto ao Padre Mauro Luiz da Silva, fundaram os movimentos Memorial do Quilombo e Quilombo do Papagaio. E continuaram as conversas que buscavam soluções para estudantes que queriam ter acesso à faculdade e outras demandas estudantis.

Acervo do Muquifu é formado por doações de moradores periféricos de Belo Horizonte. Além de um museu de território, é espaço político e de resistência
Foto: Erlaine Gracie/ANF

Com o crescimento das atividades, foi necessário criar um espaço de memória para guardar documentos e os trabalhos registrados. Até que chega 2012 e a população conquista o local físico do acervo, que hoje é constituído por fotografias, objetos de festas, imagens sacras, documentos, trabalhos artesanais e utensílios usados e doados pelos antigos moradores.

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“O Muquifu conta a história dos negros que vão sendo retirados do centro de Belo Horizonte, com objetos e documentos que ficaram embaixo do asfalto, e histórias contadas pelas pessoas”, diz padre Mauro Luiz da Silva. Porém, mais que guardar objetos, o Muquifu é um espaço crítico, político e de mediações.

Um museu de território

O Muquifu é caracterizado como um museu de território, que afeta, modifica e toca, mas também é tocado e afetado pela população do entorno. “O desejo do Muquifu é de uma interferência positiva, é construir o acervo junto com os vizinhos, o que só faz sentido porque são objetos, documentos, histórias, memórias que tem ligação com o Aglomerado Santa Lúcia. Mas servimos de referência a outras favelas, também”, explica padre Mauro Luiz da Silva.

Ele reflete sobre a dificuldade da criação de um museu comunitário, cuja museologia é social e de base comunitária. “É urgente e necessário que em outras favelas de Belo Horizonte e de Minas Gerais, além dos quilombos, as pessoas se organizem para criar seus espaços, para contar suas histórias na perspectiva dos favelados, na perspectiva dos quilombolas. Faço um apelo para que outros possam surgir”, diz o padre.  

Destaques do acervo do Muquifu

Ainda fora do museu, os afrescos da Igreja das Santas Pretas, anexa ao Muquifu, chamam a atenção. “Essa pintura é uma análise da ocupação do território, utilizando o texto bíblico sobre a história de Maria, comparando sua vida com a das mulheres da Vila Estrela”, explica o padre Mauro Luiz da Silva. Foram pintadas 14 cenas de alegrias e dores da mãe de Jesus, associando às mulheres da favela.

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Dentro do Muquifu, um destaque importante do acervo é a instalação que reproduz o quartinho de empregada e a coleção Presente de Patroa, com objetos descartados ou doados para as domésticas. Entre esses pertences, há um burrinho de carga, que sugere reflexões sobre a posição e o lugar ocupado pelas empregadas.

Reprodução de quarto de empregada é uma parte emblemática do acervo do Muquifu, formada por doações de domésticas da região
Foto: Erlaine Gracie/ANF

A laje do Museu funciona como um mirante, de onde dá para avistar todo o Aglomerado Santa Lúcia. E o jardim guarda as ervas plantadas para a preparação do Chá da Dona Jovem, que é tradicionalmente servido durante as missas na Igreja das Santas Pretas, desde a fundação. Além do acervo, o Muquifu desenvolve projetos educativos e de pesquisa.

Inconformado com o esquecimento dos negros soterrados em uma das principais ruas da cidade, o padre Mauro Luiz da Silva criou o Projeto Negricidade - Projeto de Pesquisa e Centro de Documentação, que propõe, entre outras ações, descobrir a identidade dos pretos que estão debaixo do asfalto.

O historiador Cleiton Gos lamenta as 60 sepulturas de pessoas pretas soterradas. “Essa é uma das missões do Muquifu, contar histórias que não são contadas. Estamos pisando em nossos ancestrais”, lamenta.

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Historiador Cleiton Gos, que atua há oito anos como educador do Muquifu e lamenta o soterramento literal da história negra em Belo Horizonte
Foto: Erlaine Gracie/ANF

Materiais virtuais do Muquifu

O Instagram do Muquifi disponibiliza materiais interessantes, como cadernos de formação e publicações históricas. É um prato cheio para utilização em escolas.

Quer conhecer o Chá da Dona Jovem? Ele é feito com ervas medicinais do cotidiano de mulheres da região. Maiores detalhes estão em um ótimo livreto virtual do Muquifu. A incrível história de Dona Generosa, artesã e benzedeira que ganhava a vida costurando bonecas de pano, tem peças no espaço físico e na biografia baixável.

Igualmente incríveis são as histórias de Dona Marta, nascida e criada na Vila Estrela, rainha de celebrações religiosas; e de Maria Casimira das Dôres, a “preta veia”, cuja crença deu origem à Guarda de Moçambique Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário.

O Muquifu também expõe obras temporárias de artistas locais e promove eventos sobre a cultura negra e favelada.

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