Maior, mais longevo e mais importante grupo de rap do Brasil, os Racionais MCs há mais de década frequentam o repertório de textos usados por professores de história de todo o país para analisar as realidades socioeconômicas das periferias nacionais. Mas o reconhecimento dos Racionais enquanto cânone da arte brasileira ganhou novo status quando, em maio de 2018, a prestigiada Universidade de Campinas (Unicamp) anunciou que Sobrevivendo no Inferno, álbum de 1997, seria uma das obras literárias de leitura (ou seria audição?) obrigatória para seu vestibular.
No mesmo ano, Sobrevivendo no Inferno virou livro, com as letras impressas em uma edição caprichadíssima da Companhia das Letras, e o grupo ganhou sua primeira exposição, Racionais MCs: Três Décadas de História, que durante uma semana trouxe mais de 500 itens, entre objetos, fotografias e vídeos, no Red Bull Station, então espaço cultural patrocinado pela marca de energéticos no centro da capital paulista.
Desde então, a celebração do legado do quarteto tem se aprofundado: em 2022 estreou na Netflix o documentário Racionais: Das Ruas de São Paulo Pro Mundo, e, em dezembro do mesmo ano, participaram de uma aula aberta na Unicamp para falar sobre a sua obra.
O ano de 2023 também é importante para os Racionais nesse ponto de vista. Celebrando 35 anos de existência, o grupo tem uma nova exposição, mais robusta, prevista para estrear no Museu das Favelas, enquanto a Unicamp se organiza para conceder o título de doutor honoris causa (título concedido a pessoas eminentes que não precisam passar por graduação) para Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e Kl Jay.
Mas antes disso, no mês de maio foi lançada a primeira coletânea de artigos acadêmicos sobre o grupo. Racionais MCs: Entre o Gatilho e a Tempestade, com o subtítulo retirado de um verso de Edi Rock na faixa “Nego Drama”, é um lançamento da editora Perspectiva, dentro de sua nova coleção Hip Hop em Perspectiva, que até o momento contava com apenas um título, Barulho Preto, clássico livro de 1994 da pesquisadora norte-americana Tricia Rose e considerado um dos primeiros tomos do que se chama nas universidades de “estudos do hip hop” (Hip Hop Studies).
“Nós organizamos um curso sobre Racionais no SESC durante a pandemia [A Obra dos Racionais MCs em Três Décadas, realizado online pelo Centro de Pesquisa e Formação do SESC São Paulo, em julho e agosto de 2020], e no meio do curso surgiu a ideia de fazer uma coletânea a partir das apresentações. Nem todas as pessoas que ministraram as aulas escreveram, enquanto outras, como o Acauam e o Tiaraju [PabloD’Andrea, professor da Universidade Federal de São Paulo], que não ministraram aulas mas contribuíram para o livro”, conta Daniela Vieira, professora de Sociologia na Universidade Estadual de Londrina (UEL), e quem organiza o livro e coordena a coleção ao lado de Jaqueline Lima Santos.
O livro dá uma dimensão do tamanho da obra e das inúmeras leituras que podem ser feitas sobre os Racionais MCs, incluindo análises da relação entre o grupo e a imprensa paulista, os discursos sobre raça masculinidades, análises estéticas que vão das letras à arte dos discos e a relação dos “quatro pretos mais perigosos do Brasil” com o mercado fonográfico.
“Os Racionais hoje fazem parte do cânone da música popular brasileira”, diz Daniela Vieira. Ou seja, os Racionais já estão inscritos na cultura nacional, e ninguém precisa mais se “justificar” para propor estudos sobre o grupo.
“Eles [Racionais] são foda mesmo, são pioneiros em vários aspectos, e têm uma produção estética que são poucos os grupos artísticos, seja na literatura, artes plásticas, cinema, que alcançam na história do Brasil”, concorda Acauam Oliveira, professor de Literatura da Universidade de Pernambuco (UPE), autor do prefácio da versão livro de Sobrevivendo no Inferno e que assina um artigo sobre o álbum Cores e Valores em Entre o Gatilho e a Tempestade.
Mas a história não foi sempre assim. O que leva os Racionais a ocuparem um espaço de maior destaque nas universidades e na cultura em geral é a própria força do trabalho deles, segundo Acauam.
“Todos os lugares que eles chegaram não foi por favor, não foi sem briga, sem disputa, não foi de boa, não foi concessão, foi sempre quebrando tudo, botando o dedo na cara. Foi sempre em seus próprios termos, mas em lugares onde não havia espaço para impor seus próprios termos. Se hoje os discos sempre estão nas listas é porque os caras são gênios, que realizaram uma obra densa e consistente que se torna fundamental para compreender a nossa época”, diz o professor.
“Aos poucos a academia vai percebendo que, para entender o que o Brasil se tornou com o fim da ditadura, ela precisava ouvir Racionais, tinha que ouvir as vozes dos sujeitos periféricos. Quando você tem uma crise profunda das categorias da esquerda clássica de compreensão da realidade, categoria de classe, categoria de trabalho em uma sociedade precarizada, uberizada, onde a sociedade do trabalho se esgota em grande medida, você tem ali uma periferia pulsante, pensante, que estava criando uma série de categorias conceituais novas, e os Racionais oferecem uma síntese, mesmo estética, artística e de pensamento dessas transformações, inclusive fornecendo instrumentos de análise para compreender essa realidade que no campo da esquerda tradicional estava se perdendo”, resume Acauam.
Daniela Vieira ainda aponta que esse processo também se dá através da “nova condição do rap”, de um novo lugar social e simbólico do rap nacional, com uma maior circulação dessa obra para espaços diversos, incluindo a internacionalização da produção brasileira. “Isso fica mais evidente a partir do Emicida”, aponta a professora.
Porém, tanto Daniela quanto Acauam Oliveira concordam que um dos fatores centrais nesse novo momento, não só para os Racionais, tem a ver com o fato de a política de cotas ter deixado as universidades brasileiras mais negras. “Isso está muito relacionado aos alunos que têm ingressado nas universidades a partir dos anos 2000, essa geração que lutou pelas políticas de ação afirmativa e entra através dessas políticas e que vai olhar para novos temas de pesquisa que dialogam com as suas experiências, suas quebradas”, diz Daniela.
“As políticas de cotas são uma conquista do movimento negro, que vem lutando por mais inserção social desde a escravidão, e, de uma maneira mais ampla, os Racionais e o hip hop fazem parte desse movimento. Quando havia uma universidade formada por 98% de brancos, essa inserção era muito mais difícil, mas quanto mais preta a universidade fica, mais se encontra espaço para isso”, afirma Acauam.
O professor da UPE aponta que essa transformação não é apenas nos temas e objetos de estudo, mas também na maneira de se criar conhecimento, uma mudança “epistêmica”. “Existem mudanças importantes na maneira de se ver: o que merece ser visto, ser lido, a partir de uma perspectiva afrocentrada? Porque se lia Castro Alves como o ‘poeta dos escravos’ mas não se lia Luiz Gama? Mudanças na ideia de valor, de como interpretar. Quem disse que os parâmetros de análise do alto modernismo, que servem para interpretar Guimarães Rosa e Clarice Lispector, são adequados para interpretar os diários de Carolina de Jesus? E quem disse que você tem que abandonar os diários porque o princípio de análise metodológica não dá conta do objeto? Você tem que mudar o método. Quem vai aparecer no cânone se a gente não contar a história a partir não da casa grande, mas da senzala, e sobretudo, não da senzala, mas dos quilombos? O que acontece com Machado de Assis quando a gente entende que ele escreveu como um homem negro que odiava a elite branca de se tempo, e não como um homem negro que escondia sua raça, tinha vergonha?”, explica.
Essa nova perspectiva não vai afetar apenas os Racionais, que, como principal grupo do hip hop brasileiro, e um dos fenômenos culturais mais importantes da história do Brasil, acabam sendo mais estudados. “A tendência é você ter novos sujeitos, atores. No campo do hip hop, eu tenho participado de muita banca, lido muita publicação, sobre outros artistas: tese de doutorado sobre Facção Central, Sabotage, dissertação de mestrado sobre Emicida, Baco Exu do Blues, Don L, Djonga, até sobre rappers menos conhecidos, como o Makalister, por exemplo”, aponta Acauam Oliveira.
Além disso, esse interesse chega a outros gêneros de produção periférica. “No meu horizonte, vejo o funk e o slam sendo cada vez mais estudados. Existem muitos estudos sobre o funk, apesar de o funk ainda carecer da criação de uma gramática própria para ser estudado a partir de seus aspectos musicais, uma vez que a teoria musical eurocentrada não fornece os instrumentos necessários, mas se estuda sobre as perspectivas de gênero, violência. Os estudos do slam, que vêm muito sob uma perspectiva de gênero, traz questões interessantíssimas que são colocadas para o hip hop, os pontos fracos do hip hop, sobretudo a misoginia”, assinala Acauam.
Toda essa nova produção deve encontrar o público fora das universidades com a coleção Hip Hop em Perspectiva. “O próximo livro que vai sair é uma tradução de From Black Power to Hip Hop, da Patricia Hill Collins, a gente também vai traduzir o livro da Halifu Osumare (The Africanist Aesthetic in Global Hip-Hop) e estamos de olho na produção sobre hip hop que tem sido editada na França. É uma coleção que vai durar no mínimo uns 10 anos, tem muita coisa a ser feita e o campo do hip hop está muito efervescente mundo afora. Além disso, devemos ter outras coletâneas, no caso dos estudos brasieiros”, entrega Daniela Vieira.