Para Marcos Bagno, da Universidade de Brasília (UNB), rap, funk e literatura marginal “conquistam na marra o direito à fala própria”. Nesta entrevista, ele retoma o debate que o tornou conhecido, e o atualiza diante dos influenciadores digitais.
Desde que o pesquisador Marcos Bagno publicou um bombástico livrinho em formato de bolso chamado Preconceito Linguístico, há mais de 25 anos, a maneira de falar do povão passou a contar com um aliado de peso, que vem ganhando leitores até hoje, com mais de 350 mil exemplares vendidos.
O pesquisador da Universidade de Brasília (UNB) tem a muito dizer sobre o funk, rap, literatura marginal e expressão popular. E atualiza o debate sobre preconceito linguístico para o mundo dos influenciadores digitais de gramática.
Bagno discute e defende a poderosa língua viva, estudada por gente da pesada, antes e depois dele. Expressões como “é nóis”, hoje incorporada à fala comum, são variações da língua, assim como dizer “pobrema” e “chicrete”.
Duvida? Até Camões escreveu “ingrês” ao invés de “inglês”. Camões é analfabeto? Não, ele poetou, assim como os funkeiros, com as palavras da língua viva, sob todos os efeitos dos fenômenos sob os quais linguistas se debruçam.
Marcos Bagno, com mais de 20 livros escritos, é um professor que as quebradas precisariam ter.
Suas pesquisas sofreram mais ataques com a polarização política?
O estudo do preconceito linguístico, e a militância contra a discriminação social baseada na linguagem, tem sofrido ataques da parte desse espectro ideológico que se alimenta de um ideário claramente fascistóide. Tal como o trabalho de tantas e tantos colegas de outras áreas, o meu também é rotulado de “doutrinação”.
Rap e funk são poderosos difusores da identidade da língua brasileira?
A luta contra a opressão, a violência e a discriminação não poderiam se expressar de outro modo a não ser pela linguagem própria de quem sofre essa opressão, violência e discriminação. Os movimentos sociais e culturais da periferia chutam o balde das formas linguísticas consideradas “cultas” e “aceitáveis” e conquistam na marra seu direito a falar de sua realidade em sua própria linguagem.
Como a chamada “literatura marginal”, escrita e produzida em saraus e batalhas de rimas, redefine conceitos artísticos?
Não sei se isso pode realmente modificar os parâmetros de avaliação do que é ou não “literatura”, uma discussão secular, mas seu impacto, por exemplo, nos estudos literários na universidade já se faz sentir há um bom tempo. Sem dúvida, para isso contribuiu a entrada de cada vez mais pessoas pretas e periféricas no ensino superior.
Como avalia essa mudança?
A população universitária, antes essencialmente branca e de classe média, se alterou profundamente, embora em algumas áreas, como a Medicina, o elitismo continue vigorando quase inabalável. Aquelas pessoas que ingressaram como estudantes na universidade há quinze ou vinte anos agora ocupam cada vez mais os espaços acadêmicos como docentes, pesquisadoras e pesquisadores, e isso vem alterando profundamente o modo de produção de conhecimento nas universidades.
Os vestibulares ainda cobram muita gramática?
O foco hoje está principalmente na capacidade de leitura, de apreensão dos efeitos de sentido de textos completos etc. O problema é, de fato, a existência mesma do vestibular, um processo seletivo que não tem razão de ser: se a pessoa concluiu a contento o ensino médio, por que tem de fazer uma prova para mostrar que o concluiu? O sistema educacional oficial não confia em si mesmo?
Falar “chicrete” ou “pobrema” é um fenômeno da língua verificável até em Camões?
É um fenômeno chamado rotacização, em que o som escrito com a letra L é pronunciado com o som escrito com a letra R. Isso ocorreu abundantemente na história da língua. As pessoas menos escolarizadas ou analfabetas não “erram” porque querem ou porque são “ignorantes”. Em Camões encontramos “frauta” por “flauta”, “ingrês” por “inglês”, “pruma” por “pluma”.
Como avalia a enxurrada de influencers e professores de gramática na internet?
A velha tradição dos “consultórios gramaticais”, que antigamente se valia da mídia impressa, alcançou a televisão e o rádio na década de 1990 e agora se expande pelos meios digitais. Mas permanece essencialmente a mesma: a defesa de um padrão incoerente, obsoleto, anacrônico, acompanhada de um desprezo pelos modos autênticos de usar a língua, que é no fundo um desprezo pelas pessoas que não empregam uma fantasmática “norma culta”, que ninguém sabe exatamente o que é.
Tem esperança de um dia abraçarmos a língua brasileira como um patrimônio estratégico e identitário?
Sou um pessimista por natureza e esse pessimismo é reforçado a cada dia diante do que vemos ocorrer mundo afora.