O Visão do Corre publica o terceiro e último perfil de estudantes da favela São Remo na Universidade de São Paulo (USP), vizinha da comunidade. A aglomeração de barracos começou na década de 1960, com trabalhadores que construíram a USP. Universidade completa 90 anos e abre inscrição para o vestibular, a Fuvest.
Letícia Souza de Jesus, 21 anos, é nascida e criada na favela São Remo, vizinha à Universidade de São Paulo. Ela é aluna de Engenharia Elétrica da USP e a caminhada da família pavimentando seu ingresso no ensino superior pode ser resumida na frase “sempre busquei mais do que era ofertado”.
Ela nasceu no Hospital Universitário (HU), instalado no campus central, cuja entrada é por uma rua que cruza a favela São Remo. A mãe, depois dos 40 anos, faz Ciências Contábeis; o pai trabalha em serviços de manutenção na USP, principalmente como pedreiro.
Por incrível que pareça, Letícia vem apresentando a Universidade ao pai, que sempre trabalhou no campus, mas o conhecia pouco. “É um absurdo, o que mais me incomoda é que as pessoas da comunidade não conhecem a USP. Há uma distância, apesar de estarem do lado”.
Letícia é perguntada, por exemplo, quanto paga para estudar. Ela conta essa e outras histórias na sala de casa, onde recebeu a reportagem do Visão do Corre. Discreta, prefere não tirar fotos.
“Sabia que queria universidade pública”
Apesar das dificuldades econômicas, Letícia teve uma base educacional, que fez toda a diferença. Na infância, frequentou creche na USP. Estudou em escolas públicas e, no ensino médio, voltou ao campus central, como aluna da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação.
“Sempre sonhei em fazer faculdade na USP”, diz Letícia, que “rachou” de estudar para alcançar o sonho. Fez cursinho pré-vestibular, prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e conseguiu duas vagas.
Entrou em Engenharia Elétrica na USP, em São Carlos, interior paulista, e conseguiu bolsa no Mackenzie, na capital. Não foi para nenhuma. Tinha 17 anos e os custos eram altos para se manter fora de casa ou em universidade particular, mesmo com bolsa.
“Sabia que queria universidade pública”
Era 2020. Com a pandemia, Letícia estudou sozinha para tentar a aprovação na USP da capital, do outro lado do muro. Um dos portões de acesso da São Remo ao campus fica a poucos passos da casa dela.
Refez provas anteriores, consultou apostilas, assistiu resoluções de exercícios no Youtube. No final do ano, prestou Enem e Fuvest, o vestibular da USP. Passou para a segunda fase, realizada no início de 2021. Em março, foi aprovada na primeira chamada para o curso de Engenharia Elétrica.
A graduação na Escola Poitécnica da USP é em período integral. Entram duas turmas em Engenharia Elétrica, com 90 alunos cada. São, no mínimo, seis disciplinas por semestre. Letícia sempre foi bem em Exatas, mas percebe que “a defasagem vem de lá de trás. Física, cálculo e outras matérias exigem muito. Precisa ter tido uma boa base no ensino médio”.
Letícia quer trabalhar com automação e controle
Os cursos de engenharia são historicamente masculinos. Dos 180 ingressantes junto com Letícia, vinte e uma são mulheres. “O cenário está melhorando. Sem cotas, seria muito pior. É pior ser mulher do que ser preta”, compara.
Ela está no quarto ano. Em 2024, adianta disciplinas para fazer estágio. Quer atuar na área de automação e controle. Na São Remo, nem todos os vizinhos sabem que ela estuda na USP. Letícia não quer aparecer e seu sonho é sair da comunidade.
Não se trata de ódio ao lugar onde nasceu e cresceu. É que Letícia faz o corre para ir sempre mais longe.
Perfil dos ingressantes na USP
Segundo o Anuário Estatístico da Universidade de São Paulo, em 2024 somente 17,83% dos aprovados estudaram em escola pública. Pretos e pretas, como Letícia, são 4,17%; brancos, 65,33%.
As famílias com renda de um salário-mínimo representaram 3,17% dos novos alunos. A faixa salarial dos familiares da maioria dos calouros está entre dez e quinze salários-mínimos.
A profissão dos seus pais varia entre médico, engenheiro, promotor. Filhos de padeiros, operários, mecânicos, pintores e pedreiros (como o pai de Letícia), representam 6,5%.
Ao menos três da São Remo na USP
A favela São Remo divide o muro com a Universidade de São Paulo. A comunidade começou a ser formada na década de 1960, por trabalhadores que construíram a USP.
Segundo a Prefeitura, na São Remo vivem cerca de 11 mil pessoas. No ano passado, a USP formou uma quantidade maior do que o número de moradores da comunidade. Foram 14.726 graduandos e pós-graduandos.
O Visão do Corre procurou, desde abril, alunas e alunos da São Remo matriculados na USP. Encontrou três. Além deste perfil, publicamos o de Jhonatan Neves dos Santos, calouro de Educação Física, e o de Paulo Rogério Nunes dos Santos, de Arquitetura.