A violência policial em favelas e bairros periféricos se manifesta de diversas formas, não só nas operações policiais, quando ocorrem abordagens abusivas, invasão a domicílios, tiroteios e chacinas. Nas quebradas do Rio de Janeiro, a simples presença de viaturas e policiais altera a rotina, gera apreensão e afeta a saúde mental, especialmente de quem passou por episódios traumáticos de violência policial.
É o que acontece com Fátima Pinho, 49 anos, uma das fundadoras do coletivo Mães de Manguinhos, da favela de mesmo nome, na zona norte da capital fluminense. Ela perdeu seu filho, Paulo Roberto, o Nego, para a violência policial. A ativista conta que é comum ver mães cujos filhos foram assassinados na mesma situação que o dela, passando por muita angústia, ansiedade, síndrome do pânico.
Além de outros transtornos, tem perdido a memória. “Eu converso com a pessoa, dali a cinco minutos nem sei mais o que estou falando. Não gravo mais número de telefone, nem fisionomia.” Ela é acompanhada por psicóloga e faz uso de remédios controlados para lidar com a dor da perda.
Há também doenças físicas causadas pelo medo e angústia na convivência com tiroteios e operações policiais. A ativista costuma ouvir relatos de outras mães com labirintite e pressão alta. É a saúde mental afetando a física. Estudo recente do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) constatou que moradores expostos à violência têm 42% mais risco de desenvolver hipertensão.
Psicólogas das periferias vivenciam a situação de dentro
Hodilea Silva, psicóloga social e clínica, com experiência entre pessoas cumprindo medidas socioeducativas, afirma que episódios de violência policial geram, principalmente, depressão, ansiedade e transtorno pós-traumático. “É comum escutar queixas de tristeza e vontade de não fazer nada.”
Segundo ela, operações policiais mudam a dinâmica psicológica e social das periferias. São inúmeros exemplos de situações que afetam a saúde mental, como moradores que estipulam o horário “mais tranquilo” para sair de casa. Até o deslocamento aos serviços de saúde, quando existem, são afetados.
Janaina Vidal, moradora da Favela do Muquiço, zona norte do Rio de Janeiro, psicóloga especialista em promoção da saúde e desenvolvimento social, lembra que durante as operações policiais as unidades básicas de saúde são fechadas, afetando ainda mais o acesso da população à saúde mental.
O peso de estar alerta o tempo todo
A psicóloga Hodilea Silva lembra que dificilmente quem mora fora das periferias tem noção da importância de poder se deslocar livremente, ir ao médico, ao dentista. O direito de ir e vir é garantido constitucionalmente. “Pensar em moradores de favelas é pensar em violência constante e escancarada: transporte público em péssimas condições, pessoas demoram até três horas para chegar ao trabalho, há filas nos hospitais, demora para marcar consulta.”
Segundo Janaina Vidal, os moradores acabam vivenciando um sentimento de alerta o tempo todo. Por exemplo, se a operação acontece pela manhã, a pessoa se preocupa com atrasos no trabalho ou em levar os filhos à escola. “Então, de alguma maneira, afeta diretamente não só a vida emocional, mas a social e econômica.”
O relato de Janaina
As declarações de Janaina Vidal são de quem trabalha na saúde e mora na periferia. Além de cuidar da população, tem uma experiência pessoal traumática para contar. Seu filho, quando adolescente, foi abordado por policiais perto de casa, dentro da padaria, enquanto comprava pão.
Moradores que presenciaram a abordagem afirmaram conhecer o rapaz, disseram que ele era morador do local e que não possuía envolvimento com o crime. “Quando se põe em dúvida quem você é, dentro do território que você considera seguro, onde você caminha para comprar pão, o sentimento de pertencimento acaba afetado.” Após a abordagem policial ao filho, a ansiedade foi instaurada na família.
A psicóloga critica a naturalização do sofrimento em periferias. Quando as pessoas vão buscar ajuda, estão sofrendo há muito tempo. A procura por algum profissional da saúde acontece apenas quando os sintomas estão visíveis e insuportáveis.
“O favelado que passa todo tipo de violência demora a perceber porque o tempo todo tem outras preocupações, precisa trabalhar, sustentar a casa.” Mas, mesmo que não se possa dar uma solução ao sofrimento, oferecer escuta é fundamental e pode, sim, salvar vidas.