O distrito de São Mateus, na zona leste de São Paulo, teve o passado recontado por meio da história dos moradores em dois trabalhos publicados recentemente. O livro "Memórias de um São" e a dissertação de mestrado "Cotidiano e lutas sociais na periferia de São Paulo" apontam outros caminhos para entender como a região se tornou um ponto de cultura e de atuação de movimentos sociais.
"A importância do livro é falar que as pessoas existem, que os moradores reconheçam suas histórias e de que a periferia não é apenas um bairro dormitório", pontua logo de cara Priscila Machado, 35, coautora do livro "Memórias de um São".
A obra, produzida ao lado de Amanda Freire de Sousa, tece o contexto da cultura do território e faz o mapeamento de 100 artistas locais.
Cria do bairro Jardim da Conquista, no Iguatemi - distrito pertencente a subprefeitura de São Mateus -, Priscila conta que a cultura sempre esteve presente na vida dela. A partir de oficinas de teatro na infância, teve contato com as artes.
Em 2013, por meio de um edital da prefeitura, desenvolveu o Fórum de Cultura de São Mateus, espaço de reunião e debate entre os artistas da região. Nessa experiência ela percebeu como não havia registros sobre quem faz arte e cultura no bairro.
No ano seguinte, em conjunto com Amanda Freire, Priscila recuperou a história do movimento popular por cultura em São Mateus, que atuou entre os anos 1970 e 1990, e registrou 100 artistas.
"A importância é mostrar a cultura pulsante do território e também dar o reconhecimento e valorização necessária para o artista ter a sua história contada e registrada. Por que se não for a gente, quem vai fazer esse registro?"
Priscila Machado, coautora do livro "Memórias de um São"
Uma das artistas registradas no livro é a sambista Tia Cida dos Terreiros, que é o ponto de partida do livro "por ser a nossa matriarca, a pessoa que iniciou todo esse processo [artístico] em São Mateus", explica Priscila.
A coautora do "Memórias de um São" relembra como foi o processo de pesquisa para o livro. "A gente grudava o nome das pessoas na parede de casa e saía tentando marcar essas conversas. A cada conversa a gente descobria um novo grupo, um pedacinho mais da cultura do território".
Priscila conta que localizaram 300 artistas, mas por conta do tamanho do livro apenas 100 entraram.
Ao todo, 1000 exemplares foram distribuídos e o último foi para a cientista americana Angela Davis, em 2019. Mesmo esgotado, o livro está disponível para empréstimo em diversas bibliotecas públicas da cidade de São Paulo.
Versão Acadêmica
A relevância de trazer a história partindo de quem vive nos bairros também tem estimulado novas pesquisas na academia. Uma delas é a dissertação de mestrado "Cotidiano e lutas sociais na periferia de São Paulo", que resgata registros sobre São Mateus em diversos acervos e apresenta moradores importantes em várias lutas.
O trabalho é do historiador Adriano Sousa, 35, que estudou história na USP (Universidade de São Paulo). Criado no Parque Boa Esperança, também no distrito do Iguatemi, Adriano teve acesso a ciência no ensino médio técnico que fez na ETEC (Escola Técnica) Lauro Gomes, em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.
"A ideia da dissertação é construir uma história geral de São Mateus, ouvir os moradores e como esse território se urbanizou por meio da mobilização dos moradores", explica.
De acordo com o pesquisador, a dissertação vai além da história contada pelos registros da prefeitura, restrito apenas à participação de Mateo Bei e sua família no loteamento de terras.
O trabalho destaca a atuação dos moradores Aldo Leite da Silva, Maria Aparecida Trajano - a Tia Cida dos Terreiros -, Maria Elza Araújo, Pedro Caranicolov, Teresinha Camargo, Rose Fernandes Morais, Orinho Ferreira e Geralda Fernandes Morais. De acordo com a pesquisa eles foram importantes para lutas em prol da moradia, saúde, transporte e meio ambiente e a urbanização da região.
Aldo Leite, por exemplo, foi subprefeito de São Mateus entre 1989 e 1991, fez parte do movimento que batalharam por mais unidades de saúde na região. Já Pedro Caranicolov enfrentou os aterros sanitários do bairro e hoje luta pela preservação do Morro do Cruzeiro, segundo maior pico da cidade localizado no Jardim Santo André.
Outra história resgatada por Adriano é a de Teresinha Camargo, que faz parte da Associação de Agricultores da Zona Leste, onde produz alimentos orgânicos a baixo custo e contribuiu para a luta por moradia na região nos anos 1980.
Para realizar o estudo, Adriano fez pesquisas nos anais da Câmara Municipal de São Paulo entre 2018 e 2019 para encontrar registros sobre o bairro da zona leste.
"Falta muito na universidade a história oral e mostrar que o próprio morador constrói o território, colocar o elemento humano dentro da equação e trazer uma perspectiva de pesquisa periférica e popular"
Adriano Sousa, historiador
Incentivado pela família, Adriano prestou a Fuvest e ingressou na USP. Na universidade fez iniciação científica e trabalhou como assistente em programas de pesquisa. "Foi um choque estar em um lugar onde o seu território só é conhecido por estereótipos como índices de assaltos, roubo de veículos e pela distância. Para quem está no centro tudo que é periferia é distante e violento", recorda.
Adriano se tornou pesquisador do CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação Histórica) Guaianás e tem debatido a soma entre teoria e prática. "As pesquisas acadêmicas, se articuladas com os movimentos populares, dão subsídios para as pessoas pensarem outros projetos e colaborarem com as lutas das periferias".
Para Adriano Sousa a maior parte do que a periferia faz é ciência e de forma mais eficiente que as regiões nobres da cidade. "Quanto mais a quebrada estiver na universidade, mais a gente vai qualificar nossos saberes como ciência. E que são muito melhores do que de muita gente da elite, porque a gente tem recursos escassos e precisamos fazer o que a gente tem render".
É possível encontrar a dissertação de mestrado do Adriano na Biblioteca Digital da USP.