No quarto de Kelvy Alecrim, de 15 anos, divide com uma de suas irmãs mais novas, as medalhas de campeão paulista e brasileiro de boxe na categoria cadete se espremem penduradas ao lado do espelho do estreito. No armário ao lado, fotos do garoto que nunca perdeu uma luta durante quatro anos em que pratica a modalidade e que, segundo ele mesmo, nunca perderá.
A cativante presunção e a sincera falta de modéstia típica de pugilistas como Muhammad Ali e Mike Tyson se misturam com a timidez de um adolescente que se comunica através de frases curtas e ligeiras enquanto os olhos não desgrudam da tela do seu smartphone. “Ele não faz outra coisa da vida que não seja ir para escola, lutar boxe e dormir”, explica Quédina Matos Alecrim, mãe do jovem boxeador.
Ex-agricultora e ex-capoeirista, Quédina deixou em 2016 o pequeno povoado de Canoãozinho de Presidente Dutra, no sudoeste da Bahia, para tentar a vida em São Paulo. Junto com Kelvy mais três filhos, o marido, uma irmã e sobrinhos, ela divide a casa estreita de três pavimentos localizada no Moinho, última favela da região central da capital paulista, cravada por cima dos trilhos da linha 7 da CPTM, entre os bairros do Bom Retiro, Barra Funda e Campos Elíseos.
Iniciado na capoeira pela mãe desde os dois anos de vida, Kelvy calçou luvas de boxe pela primeira vez pouco tempo depois que pisou em terras paulistanas. A habilidade do garoto franzino no novo esporte impressionou seus professores logo nas primeiras aulas realizadas no campinho da favela.
“Ele teve uma facilidade grande para se adaptar aos movimentos do boxe, talvez tenha trazido isso da capoeira. Não parece, mas o boxe é uma atividade muito difícil”, explica Raphael Piva, treinador de Kelvy e co-fundador do Boxe Autônomo, coletivo de inserção social através do esporte com princípios antifascistas.
Um crime que mudou o Moinho
Um ano depois da chegada de Quédina, Kelvy e o restante da família no local onde moram hoje, um crime cometido pela Polícia Militar do estado de São Paulo na vizinhança foi determinante para que o boxe chegasse à comunidade. Em junho de 2017, Leandro de Souza Santos foi assassinado por PMs depois de ter sido torturado, por pelo menos meia hora, dentro do barraco onde vivia. O jovem morreu com apenas 18 anos.
A morte de Leandro gerou uma forte comoção dentro do Moinho e depois disso projetos sociais foram convidados para trabalhar dentro da comunidade com o intuito de mudar a visão que o resto da cidade tinha sobre o local que existe há pelo menos duas décadas e já foi considerado um dos mais perigosos da região na época.
“A gente já trabalhava desde de 2015 dentro de ocupações por moradia no centro de São Paulo, como a Mauá e a Leila Khaled, que também abrigava refugiados. No final de 17, após o crime que ocorreu com Leandro, fomos convidados por lideranças do Moinho a darmos aulas de boxe para crianças da comunidade. Foi numa dessas aulas que o Kelvy apareceu”, conta Raphael Piva.
Quédina Alecrim reconhece que o boxe ter entrado na vida do filho trouxe outras perspectivas para o jovem em relação ao seu futuro. Segunda ela, o próprio Kelvy sabe que o seu cotidiano seria bem diferente caso continuasse morando no interior da Bahia ou não tivesse praticando uma atividade esportiva.
“Eu agradeço muito o boxe por fazer o Kelvy passar mais tempo em casa do que por aí na rua. Ele me falou esses dias que, olhando pelas redes sociais, vê os amigos dele da época que morávamos na Bahia postando só coisa de farra e cachaça. Talvez se a gente tivesse ficado lá, ele estaria com esse pessoal também”.
Exemplo hoje e de olho do futuro
A festa foi grande na pequena viela onde fica localizada a casa de Kelvy para comemorar o título brasileiro conquistado em Cuiabá, em novembro de 2021. Churrasco e diversas crianças imitando os movimentos do jovem boxeador que, mesmo sem intenção, se tornou uma referência para os vizinhos e mais jovens.
Parceira de treinos e vizinha de comunidade, Marcela de Barros tem a mesma idade de Kelvy, porém ainda não tem o mesmo currículo do amigo. O talento que ela esbanja já enche os treinadores de confiança sobre o futuro dela dentro do esporte, mas há obstáculos que vão além. Ela não pode competir no mesmo campeonato onde o parceiro de treinamentos se sagrou campeão, por exemplo, por não haver o número suficiente de adversárias para lutar com ela.
Até hoje o Brasil conquistou oito medalhas na história do boxe nas Olimpíadas. Dessas, sete foram nas três últimas edições. Isso mostra como o esporte vem despontando com uma das principais modalidades olímpicas do país. No que depender de Kelvy e seus treinadores esse número tende a crescer.
“Ele tem ainda mais quatro anos para competir nas categorias de base até chegar ao seu ciclo olímpico. Pela idade e seus resultados a gente projeta que a olimpíada dele será a de 2028, em Los Angeles, mas, dependendo, há uma chance que ele pelo menos comece a treinar com a equipe que vai para Paris”, analisa Breno Macedo, que também integra a equipe de treinadores do Boxe Autônomo.
“Ele tem velocidade e agressividade como pontos fortes. Isso já veio dele, o que a gente sempre tenta aumentar é a parte técnica, onde ele também se destaca em relação aos adversários”, conta Raphael Piva. Com o sorriso que mistura a timidez adolescente, o sarcasmo de quem leva a vida de uma maneira leve e a autoconfiança que só os grandes campeões têm, Kelvy garante: “Eu sou muito bom e vou ganhar tudo até lá”.