Pesquisador da USP produz mestrado sobre futebol de várzea no Grajaú

Morador do extremo sul de São Paulo, Kaue Gomes reflete que estar na universidade produzindo sobre um tema periférico é um ato político

30 dez 2022 - 05h00
(atualizado em 11/1/2023 às 10h30)
Kaue começou a jogar futebol no G.R. Brigadeiro Faria Lima
Kaue começou a jogar futebol no G.R. Brigadeiro Faria Lima
Foto: Isabela Alves/Agência Mural

“Fazer pesquisa enquanto periférico já é um grande desafio. Estar na academia produzindo, sobretudo sobre futebol de várzea, é um ato político. O esporte é um dos principais marcadores culturais da periferia”, diz Kaue Souza Gomes, 26, mestrando em sociologia pela FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo). 

Morador do Grajaú, no extremo sul de São Paulo, o letramento político e cultural do jovem ocorreu no Conjunto Habitacional BNH (Banco Nacional da Habitação), bairro onde vive desde criança. “O Grajaú tem um dos maiores polos culturais de São Paulo, como o samba e hip hop. E o futebol de várzea também é muito forte”, conta.  

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Criado dentro dos campos de futebol, o Grêmio Recreativo Brigadeiro Faria Lima fica a poucas quadras de casa e foi lá onde ele iniciou a carreira de jogador, chegando a fazer um período de avaliação no sub 13 no São Paulo Futebol Clube. No entanto, durante a adolescência teve novas perspetivas. 

Aos 15 anos, começou a estudar nos cursinhos populares para ingressar na universidade e a percepção sobre raça, classe social e sexualidade foram aprofundadas. Aos 17, foi aprovado na graduação em ciências sociais na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), no campus Guarulhos. Para estudar, se mudou para o município da Grande São Paulo por dois anos. 

A mãe dele, Rosiane, é deficiente visual, enquanto a irmã Tauane Sousa, conhecida pelo apelido de “zóio”, é jogadora profissional de futebol e atua no Sport Club Internacional de Porto Alegre. Por conta dos cuidados que a mãe precisa e a carreira da irmã, Kaue pediu transferência para a USP e voltou a morar no Grajaú. 

“Minha trajetória de vida pessoal e familiar convergem para o estudo. É até um dilema metodológico como pesquisador. A proximidade com a linha de pesquisa faz com que eu tenha facilidades de conhecer espaços de interlocução que só tem entrada quem é do mundo varzeano”, comenta. 

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O time Esporte Clube Casarão faz parte dos clubes de futebol de várzea de São Paulo
Foto: Isabela Alves/Agência Mural

Futebol de várzea como marcador social  

Para a dissertação de mestrado, Kaue estudou três times do Grajaú: o Brigadeiro, o Katados F.C. Jardim Iporanga e o BNH Futebol Clube Feminino. A pesquisa discute que, a partir dos anos 2000, a várzea apresenta uma nova reconfiguração social e caminha para uma semi-profissionalização. 

Um dos pontapés iniciais para o estudo foi a Copa Kaiser – competição que se iniciou nos anos 1990 e teve a última edição em 2014. Em 2000, ela ficou em evidência em São Paulo e se tornou uma espécie de Copa do Mundo do futebol de várzea. 

Os mais tradicionais clubes da cidade estavam na competição, que contava com 192 times e duas divisões. “Estar na Copa Kaiser era uma vitrine para o futebol de várzea e para os grandes times”, observa Kaue.  

Por muito tempo, o futebol de várzea era uma das únicas opções de lazer que as pessoas da periferia tinham. Ao passar dos anos, a competição se expandiu e passou a mobilizar multidões de torcidas. Com a procura, os times começam a pagar os jogadores para estarem em campo e demais profissionais para os treinos. 

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“Até então eram os caras que se reuniam no final de semana com os amigos para jogar. Atualmente não é mais lúdico e recreativo, mas uma prática séria, de alto rendimento e comprometida com os resultados”, explica Kaue.  

A economia local girou, desde a empresa que confecciona materiais esportivos, até os fisioterapeutas que atendem os jogadores. O pesquisador estipula que os jogadores de médio e grande porte conseguem manter uma família jogando apenas aos fins de semana, ganhando até R$ 700 por jogo. 

Segundo o mestrando, o futebol de várzea se profissionalizou ao longo dos anos
Foto: Isabela Alves/Agência Mural

O corre dentro da universidade  

Durante toda a graduação, Kaue continuou jogando futebol de várzea e participando de campeonatos na região, como a Copa Grajaú, e fora do distrito. Atualmente, ele atua como diretor de dois times do bairro: Brigadeiro e BNH F.C., no qual também atua como jogador e é responsável pelo treinamento na categoria adulta. 

“Minha trajetória é muito similar a de qualquer moleque da periferia que quer se tornar jogador de futebol profissional”, conta. 

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Em 2019, o estudante conclui uma iniciação científica com o título: “Futebol de várzea em São Paulo: as fronteiras entre o profissionalismo e o amadorismo”. Já em 2021, prestou a prova para o mestrado, com o mesmo núcleo de pesquisa e professor orientador. 

“É uma relação muito doida no sentido positivo, porque ao mesmo tempo que sou observador, também sou observado na pesquisa. Tem muita proximidade, mas ao mesmo tempo há um esforço analítico de distanciamento para poder ter uma percepção plural do todo”, relata. 

Estar na USP ainda é um desafio para ele, pois é dominado por um público de classe média alta. A universidade, que é uma das principais instituições de ensino superior do Brasil, tem apenas 129 professores que se declaram negros – cerca de 2,2% do total de docentes. 

Assim como muitos jovens da periferia, ele sentiu dificuldades para ter o senso de pertencimento ao lugar. “Sempre me senti como um estranho no ninho”, desabafa. “As regras do jogo da USP são as regras da elite econômica do país, que é totalmente diferente da minha história”. 

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Kaue termina o mestrado na metade de 2023 e já pensa em prestar o doutorado com a mesma linha de pesquisa. “Fazer pesquisa sobre a periferia, sobre o olhar do periférico, mexe muito mais a estrutura. Acaba incentivando outras pessoas a entrarem e percorrem o mesmo caminho”, conclui. 

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