No distrito do Jardim São Luís, no trecho próximo à Estrada de Itapecerica, está uma das residências mais antigas da região, na zona sul da capital paulista. A proprietária da casa é a aposentada Maria Cecília de Luna, 89, mais conhecida como “Dona Lurdes”, uma das fundadoras do bairro e figura fundamental na luta por melhorias na vizinhança.
Nascida em Alagoa Nova, no interior da Paraíba, Lurdes chegou ao local, atual Jardim São Luís, em 1967, quando a região era praticamente uma zona rural.
“Além da Estrada de Itapecerica e da Rua Luciano Silva, aqui não tinha nenhum asfalto, só as ruas de terra. A partir da minha casa [sentido bairro] era tudo mato e as poucas casas eram barracos de tábua”, conta Lurdes.
Na Paraíba, contudo, o ambiente rural e as lutas políticas já faziam parte da história de Lurdes, apelido que ganhou do pai na infância e nome de uma irmã mais velha dela.
“[Foi na] Juventude Agrária Católica que ouvi falar a primeira vez sobre os meus direitos; depois entrei no grupo da Ação Católica Rural. Passei a entender a Ditadura [Militar], falavam sobre as torturas e como muita gente foi assassinada em 64 e 65”, conta a ativista.
Em São Paulo, com bagagem política e consciente dos riscos que corria, a migrante nordestina se tornou uma das lideranças à frente dos protestos por moradias populares na zona sul da cidade, durante as décadas de 1970 e 1990. Nessa época, surgiam os movimentos sociais que lutavam pela causa.
Em sua trajetória, a paraibana liderou associações de moradores do bairro e dos distritos vizinhos, protestou e cobrou por asfaltamento, saneamento básico e água encanada para as primeiras casas do local. Além do Jardim São Luís, participou de articulações por melhorias em outros bairros, como o Parque Arariba e o Campo Limpo.
Mas para se engajar e conquistar espaço nos movimentos sociais de São Paulo, a nordestina enfrentou um período de adaptação e saudades da sua terra natal.
“Fiquei muito tempo sem participar de nada. Estranhei muito aqui. Era uma terra fria. Lá no Norte, a gente cumprimenta todo mundo com bom dia, boa tarde. Aqui é diferente”.
Sentia falta da costura, profissão que aprendeu no Nordeste, e da máquina que não conseguiu trazer na mudança. Católica devota, Lurdes diz que na Igreja encontrou conforto e, a partir do contato com os vizinhos nas missas, começou a se sentir em casa novamente.
“Na época aqui era chamado ‘Jardim São João’, e eu ia na Igreja de São João”, relembra a ativista.
Fé em Deus e mãos à obra
Com o apoio do padre Mauro Baptista, Lurdes e outros fiéis criaram um grupo para ajudar na manutenção da igreja. Desse primeiro movimento, ela e outras mulheres, que também eram mães, foram reconhecendo os problemas do bairro.
No início dos anos 1970, formaram outro grupo, exclusivo para mulheres, para reivindicarem seus direitos. O contato com essas mães a fez perceber o desafio que seria educar as filhas, Ana Cristina de Luna e Ana Regina de Luna, sem escolas ou creches próximas disponíveis.
“As mulheres precisavam ir trabalhar, e como iam deixar as crianças?”, questionava a senhora. O grupo realizou protestos para que a subprefeitura solucionasse o problema, o que fez com que o poder público acelerasse a construção de novas creches e escolas na região, nos anos seguintes.
Nos anos seguintes, conheceu Olímpio da Silva Matos, ativista que coordenava grupos de moradores de outros bairros, e tinha mais experiência política.
Ele quis conhecer Lurdes pessoalmente, pois precisava da ajuda dela para convencer as famílias que moravam em casas irregulares a buscarem moradias melhores.
“Na época [da prefeitura] da Erundina, tinha muito problema com terreno ocupado, principalmente no Parque do Arariba e do Parque Regina”, relembra.
Ela conta que por meio da parceria com Olímpio foi possível reivindicar mais pautas com a prefeitura da capital e as subprefeituras. A partir dessa união de associações de bairros foram construídas casas regularizadas para várias famílias, em locais como a Cohab Adventista, no Capão Redondo.
Entre as várias batalhas travadas, a construção do CEU (Centro Educacional Unificado) Casa Blanca, em 2004, foi uma das que relembra com carinho especial, pois o projeto significava uma forma de ampliar o acesso à educação, lazer e cultura para os moradores.
Lurdes foi uma das principais articuladoras, entre os movimentos sociais da região, para tornar o CEU uma realidade. O desempenho da ativista foi reconhecido na inauguração da unidade, com uma homenagem prestada pela prefeita da época, Marta Suplicy.
A construção do centro educacional alterou o trânsito da região, bloqueando ruas e acessos. “Foram nove meses de obra. Uma dor de cabeça com alguns moradores. Eles reclamavam dizendo: ‘isso tudo culpa da Lurdes’”, recorda aos risos.
A paraibana lembra de outro desafio nesse período: a formação de novas turmas. “Para inaugurar era preciso ter alunos, e como iam fazer as matrículas se ainda estava em construção?!”
Lurdes contatou a prefeitura, ofereceu a casa como secretaria e mobilizou toda a família. O marido, agora já falecido, Elias Bento de Luna, era aposentado e durante semanas conviveu com os funcionários do CEU. As filhas liberaram espaço para o funcionamento da secretaria, enquanto Lurdes auxiliava todos de forma geral. “Era tanta família para matricular para creche e Emei [Escolas Municipais de Educação Infantil]”, diz.
Aos 89 anos, Lurdes ainda participa de grupos do bairro, principalmente com outras mulheres, ensinando artesanatos para que elas possam criar outras formas de renda. Devido a idade, diz não ser mais tão ativa quanto deseja, mas faz questão de manter com carinho os cuidados com a casa – a mesma desde que se mudou para São Paulo - e suas plantas.