Eleição desune vizinhança, mas tradição é mantida para Copa

Mudança da data do evento, crise financeira e eleições atrasam a pintura das ruas e diminuem o engajamento entre os vizinhos

10 nov 2022 - 14h31
(atualizado às 14h55)
Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Realizada de quatro em quatro anos, a Copa do Mundo ocorre tradicionalmente no mês de julho. Neste ano, contudo, por conta das altas temperaturas deste período no país sede, o Catar, o torneio foi transferido para o fim do ano. O jogo de estreia, entre Equador e Catar, será disputado no dia 20 de novembro.

Desde a redemocratização do Brasil, a Copa do Mundo sempre ganhava os holofotes nacionais antes das eleições, porém a mudança da data trouxe uma nova realidade: começará com um novo presidente eleito, Luis Inácio Lula da Silva (PT), após tensa campanha.

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Em Guarulhos, segunda maior cidade do estado de São Paulo, o atual presidente, derrotado no último pleito, obteve a maioria dos votos válidos, com 53,67%. A acirrada disputa eleitoral impactou o cronograma de enfeites e a harmonia entre os vizinhos da rua Carlos Aberto França, no Jardim Las Vegas, periferia da cidade.

“Moro nessa rua há 40 anos, mas comecei a pintar a rua para a Copa em 1982, quando ainda morava no Jardim Brasil. Nessa rua eu faço isso desde a Copa de 86. Dessa vez, por conta da eleição, os vizinhos estão menos unidos, a gente está vivendo outros tempos”, conta Leandro José Florêncio, 54, mais conhecido como Leão.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Leão é motorista, mas está há 12 anos sem emprego fixo, vivendo de bicos. Ele conta que neste ano a preparação dos enfeites começou no dia 7 de setembro. “Essa Copa foi diferente, começou mais tarde. Acho que até começar os jogos a gente já terminou os desenhos. Claro que pra isso precisa ter as tintas, acabei de abrir uma, vamos ver até onde vai”, afirma. Os custos da decoração são compartilhados, cada morador contribui com o que tem, ou com o que pode. Mas boa parte do aporte fica nas costas da família Florêncio.

O empobrecimento da comunidade, segundo Leão, também tem influenciado o engajamento na festa: “Isso já vem de um tempo, por conta do desemprego e da carestia de tudo. O aumento da cesta básica, do gás, da gasolina, sufocou o pessoal, esses anos apertou bastante, aí deu uma atrasada grande nos preparativos”, opina.

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Leandra Florêncio, 26, mora na rua desde que nasceu e é o braço direito do pai na organização dos enfeites e festejos. “A pintura da rua é uma tradição que meu pai vem tentando manter, e pretendo preservar pros meus filhos no futuro, porque a gente tem que ter amor pelo nosso país”, conta.

Para ela, esse momento é um símbolo de união dos vizinhos e traz um pouco de alívio para as recentes tensões eleitorais. “Ajuda inclusive para descaracterizar a parte política das cores, do verde e amarelo e do vermelho. Agora é torcer pelo nosso país, independente de bandeira política”, diz.

Leandra Florêncio
Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Nas Copas anteriores, os vizinhos se reuniam para assistir os jogos num salão na esquina da rua. “O salão foi alugado, mas ainda assim vamos nos reunir, só que dessa vez vai ser na garagem da minha casa”, afirma Leandra.

Ao observar a posição das fitas verde e amarelas dispostas sobre a rua, e o planejamento da pintura, percebe-se que um trecho não está contemplado. Cleber Pereira, 46, morador da Carlos Aberto França há 14 anos, explica: “Tem quem não goste. O Leandro bate palma de casa em casa perguntando se pode pendurar as bandeirinhas, se pode ou não pode pintar, e ele respeita”.

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Diferente dos vizinhos, Cleber não acredita que a Copa irá diluir as tensões acumuladas pela política, e aponta a imprensa como a grande culpada. “A gente teve quatro anos de um governo que foi só criticado. A política bagunçou o cenário, eu voto há 16 anos e nunca vi isso, pessoas ficarem de mal, brigarem. Foi a imprensa que fez isso, foi a imprensa que atacou apenas um lado”, opina.

Cleber Pereira
Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Ao mesmo tempo, ele assegura que os ânimos exaltados não interferiram muito na dinâmica da vizinhança: “Aqui o pessoal não falou muito de política, foi mais em grupos de Whatsapp, porque aqui é quase todo mundo Brasil, é bolsonarista, tem um ou outro petista, mas nem aparece na rua”.

Leandra esclarece que a decoração pulará apenas duas casas. “Uma delas tem bandeira vermelha, aí não aceita o verde e amarelo”, conta. O outro morador tem uma razão diferente para negar as cores: “A outra casa é do meu tio, ele torce pra Argentina. Meu avô, que já faleceu, também torcia. Eu não sei o porquê, eles nasceram aqui, moram aqui, sei lá”. No entanto, ela ressalta que não há a menor possibilidade de colocar bandeirinhas azuis e brancas: “Nada disso, aqui é verde e amarelo, ou deixa sem”, brinca.

O artista por trás dos contornos dos desenhos da rua Carlos Aberto França é Jonathan Leme, 28, que sequer gosta de futebol. “Eu não assisto a Copa, não entendo nada. Meu negócio é o pipa, é meu hobby e meu trabalho, tenho uma loja na rua de trás. Aprendi a desenhar porque faço pipa artística. Mas a cada quatro anos eu venho dar uma força pro Leão, pra fazer os desenhos”, explica.

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Nascido e criado no bairro, Jonathan mora na rua ao lado, mas desde pequeno participa dos festejos da Carlos Alberto França. Ele se sentiu bastante afetado pelo acirramento político, e tem esperança que o torneio possa, ao menos temporariamente, mudar o foco de atenção da comunidade. “Querendo ou não, as eleições dividiram a população, parece que estamos vivendo dois ‘Brasis’, então nesse momento fica todo mundo por um Brasil só, pelo menos por um mês”, afirma.

Quem acabou de chegar na vizinhança também participa. Gabriel Quesada, 18, mudou-se para a rua no meio da pandemia, em 2020, e está animado com as movimentações e promessas de festas. “Antes eu morava na Vila Rio, na Favela dos Padres, lá eu ajudei a pintar e colocar as bandeirinhas na última Copa. Agora é aqui. O Leandro jogou a ideia e eu fui metendo marcha, já que gosto também”, explica. Foi ele quem subiu na escada para amarrar os fios com as bandeirinhas, e agora ajuda Leão com o grosso da pintura do asfalto.

Katia Simone Camargo da Silva
Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Dali a três quadras fica o Bar Alegria, onde os moradores costumam comprar bebidas. Katia Simone Camargo da Silva, 52, proprietária do estabelecimento, conta que durante os jogos eles costumam posicionar um telão na garagem de sua casa, ao lado do bar, acender a churrasqueira e vender cerveja para os vizinhos.

“Tenho o bar desde 2016, mas já moro aqui na rua há 30 anos. A gente pinta as guias aqui, e os postes. Mas nesse ano deu uma atrasada na pintura por conta da eleição”, relata. Por conta das divergências políticas, e dos novos moradores, de quem não é próxima, para esta Copa, Katia colocará as bandeirinhas apenas do lado esquerdo da rua, sobre a calçada, onde está sua casa e o bar.

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