Curitiba projeta uma autoimagem falsa há décadas: pensamos na capital paranaense dos parques, das soluções arquitetônicas, das ciclovias, mas há periferias, favelas, problemas ecológicos, urbanísticos, entre outros, que, no entanto, não são evidentes nem para todos os moradores. Daí a importância do filme Coração de Neon, que estreia em circuito nacional no próximo dia 9 de março.
O longa-metragem se passa em um dos bairros mais populosos de Curitiba, o Boqueirão, ou “boquera”, conforme o apelido carinhoso dos moradores. Conta a história de um pai que quer levar o filho para os Estados Unidos, junto com o Boquelove, nome do carro de telemensagens que garante o sustento da família. Dele saem declarações amorosas chamando a atenção da pessoa homenageada e, inevitavelmente, de toda a vizinhança.
“Escolhi o Boqueirão porque tem um elemento muito presente: o orgulho de ser do Boqueirão. É até uma brincadeira entre os moradores. Eu carrego isso. Os meus pais moram lá, é onde passei infância e adolescência. As pessoas saberem de onde eu sou é muito importante, porque valorizo minhas origens”, diz Lucas Estevan Soares, protagonista, roteirista e diretor.
O cenário, personagens e seus desejos são de pessoas comuns, trabalhadores que batalham pela sobrevivência e sonham melhorar de vida. Não é a Curitiba dos empresários, dos artistas, das lideranças políticas de projeção nacional. É a gente simples, em casas de madeira, com automóveis velhos na garagem, como o Corcel 1 que virou Boquelove, o carro de telemensagens – pintado de rosa, é breguíssimo com seus penduricalhos, luzes e alto-falantes.
Uma periferia diferente
A imagem generalizada de periferia tem barracos à beira do rio, ruas de terra, esgoto a céu aberto, ligações clandestinas de água, luz e internet. Esses locais existem em Curitiba, mas é difícil reconhecer o território suburbano intermediário entre os pontos turísticos e as áreas degradadas, como o Boqueirão.
Ali as ruas são como a do protagonista de Coração de Neon: têm asfalto (se bem que, em geral, faltam guias); as frentes das casas são gramadas (uma tradição na cidade, provavelmente herança europeia); e as residências, apesar de serem de madeira, estão pintadas e em pé, utilizáveis com o mínimo de dignidade.
“Colocar a Curitiba periférica na tela é colocar a Curitiba da minha realidade. Os curitibanos quase não vão aos parques – isso é para os turistas. A galera local está no corre e mora nos bairros. A periferia tem uma proporção muito maior do que os pontos turísticos. Retratar essa Curitiba esquecida, no cinema, sempre me atraiu”, explica o diretor.
Ele diz que seu desejo foi mostrar a capital paranaense “sem esconder nada”, especificamente “um fragmento de uma Curitiba não tão retratada”.
Rap na trilha sonora
A vida do cidadão comum constrói o enredo do filme: uma mulher que apanha do marido, policial, contumaz agressor; um pai cuja esposa morreu e ele cria o filho, com quem divide sonhos; o cachorro da família; a simplicidade de uma mensagem recitada pelo dono do carro de telemensagens; a paixão por um time de futebol, chegando ao fanatismo das agressões entre torcidas; morte por arma de fogo praticada por marido ciumento.
Nesse contexto, na trilha sonora, além de outros estilos, o rap seria inevitável. Curitiba tem um cenário relevante de cultura hip hop. De lá, por exemplo, saiu DJ Primo, referência no estilo, falecido em 2008. O diretor do filme escolheu o rap para iniciar sua carreira musical. E convidou os gêmeos rappers do Boqueirão, P.A. & P.H., para criar as trilhas do filme.
“Representam muito bem o bairro. Tem muito talento lá. O movimento rap é enorme! Tem batalha de rima na praça mais conhecida do Boqueirão e no Bar da Menô, espaço muito importante. Curitiba tem muitos MCs”.
Produção independente
Coração de Neon é produzido pela International House of Cinema (IHC que, apesar do nome, é de Curitiba). Resultante de um esforço coletivo, e diferente de boa parte da vida cultural curitibana, o filme não tem patrocínio.
Estreará em 50 cidades brasileiras, no Uruguai e na Argentina. No ano passado, recebeu prêmios no Festival de Moscou, Festival Internacional de Houston e no FestCine Pedra Azul.