Denúncia, memória, poesia e reflexão: é com esses elementos que o Movimento Mães em Luto da Zona Leste, criado em 2016, define o livro “Mães em Luta”, que deverá ser publicado em agosto.
A obra é resultado de encontros feitos por sete mães que tiveram seus filhos brutalmente executados pelas mãos de agentes das polícias do Estado de São Paulo. Os diálogos ocorreram todos os domingos, entre setembro de 2020 e maio de 2021, além de oficinas de costura, desenho e escrita.
No último sábado (16.07), a Ponte Jornalismo encontrou algumas dessas mães no Centro de Direitos Humanos de Sapopemba (CDHS), onde ocorreu um debate sobre a violência de Estado. As mães comentaram o processo de construção do livro que contou com o apoio da PUC/SP, da UNIFESP, do CDHS e de outras organizações.
A costureira Rossana Martins de Souza, 53 anos, teve a vontade de escrever um livro sobre seu filho, o estudante Douglas Martins Rodrigues, quando ele foi executado por um policial militar, em 2013, aos 17 anos. Moradora da zona norte de São Paulo, Rossana lembra que Douglas vivia com problemas respiratórios e começava a se recuperar: “Quando ele começa a viver, o Estado tira a vida dele e acaba com toda a família”.
“O tiro que acertou o coração do seu filho, o dividiu em dois, não tinha o que fazer”, foi como a enfermeira comunicou a morte do filho de Rossana. Instantes antes de morrer, o jovem disse suas últimas palavras ao PM: “Por que o senhor atirou em mim?”.
Submetido ao Tribunal do Júri, em dezembro de 2016, o PM Luciano Pinheiro Bispo foi absolvido pela morte de Douglas.
Rossana se envolveu com as Mães da Zona Leste, que comentaram sobre a vontade de fazer um livro coletivo. Ela compara a oportunidade como uma gestação: “Desde o momento que foi falado, começou aquela sensação de estar grávida, foi todo um processo. Esse livro nada mais é do que o sonho de ser mãe”.
Mães criminalizadas
“O livro é um pedacinho dos sonhos, dos objetivos, do que eles queriam fazer, do que eles queriam ser. E eu estou aqui pra buscar justiça”, conta Rossana ao se recordar que Douglas sonhava em comprar um apartamento, fazer faculdade de administração e ter dois pitbulls.
Gilvania Reis Gonçalves, 50 anos, conheceu o Movimento Mães em Luto da Zona Leste em 2017, quando seu filho, Guilherme Gonçalves, 20, foi assassinado por um policial da Rota [Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar] no Conjunto José Bonifácio, periferia da zona leste de São Paulo. “A gente passa muito descaso desde o momento em que a gente tem um filho morto pela polícia e a gente também é criminalizada.”
O livro para Gilvania é uma forma de denúncia. “Que outras mães leiam nossas histórias e vejam que a gente precisa mudar isso lutando, não nos calando. Não nos envergonhando porque quem matou é quem deveria ter vergonha”, conta.
“Imagina se as mães de Jacareí [local de um massacre policial com 10 vítimas em 2000] tivessem parado lá atrás, não teriam outros movimentos, então eu não paro, os jovens precisam viver.”
Além disso, ela traz boas recordações na publicação, entre elas o gosto do filho por dirigir e seu sonho em ser engenheiro civil. "Estávamos nos organizando para comprar um carro para ele trabalhar de Uber.”
Sidneia Santos Souza, 52 anos, é mãe de Josias Santos, morto aos 16 anos pela Polícia Militar, em 2016. “O meu Josias era uma criança muito cativante, ele se dava com todo mundo, gostava de soltar pipa”, afirma. “Quando o Estado age dessa forma brutal, ele não só acaba tirando a vida do menor, ele acaba tirando a vida da mãe que gerou o seu filho”.
Para Sidneia, o livro é um espaço de memória e diálogo, uma vez que quase não há espaço para desabafar. “Muitas vezes é um privilégio falar de uma pessoa que foi embora, com o passar do tempo isso cai no esquecimento de parentes e de amigos, mas para uma mãe isso nunca cai no esquecimento.”
“No bairro periférico, não existe lei, não existe justiça”, afirma. “É por meio dessas sete histórias, cada uma diferenciada, que cada mãe está colocando a sua dor para fora e está buscando pela justiça da mudança”.
Cinco anos depois, o processo sobre a execução de Josias ainda não foi solucionado.
Sem socorro
Solange de Oliveira Antônio, 50 anos, conduz a iniciativa para o livro. Ela tem uma história muito parecida com a das outras mães. Seu filho Victor Antônio Brabo tinha 20 anos em 2015 e foi morto por um policial civil do Garra (Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos), em Perdizes, zona oeste de São Paulo.
Ao ter acesso ao vídeo da execução de Victor, após dois anos buscando respostas, Solange descobriu que o jovem levou três disparos do policial. O policial civil não pediu socorro para ele.
“Só socorreram meu filho quando ele parou de se mexer”, diz. “Ele era carinhoso, atencioso e nesse dia nós acordamos de madrugada e ficamos conversando”, relembra. O caso de Vitor foi arquivado menos de dois anos depois de sua morte.
A situação fez com que ela se envolvesse com outras mulheres em situação similar. “Eu buscava outras mães pelo Facebook para pedir informações sobre como lidar com essa situação”, afirma. “Mas percebi que elas também não sabiam, foi quando começamos a nos encontrar para conversar”.
Solange conquistou um espaço no Centro de Direitos Humanos de Sapopemba, ao lado das mães e familiares de jovens mortos na periferia, para prestar o serviço que não encontrou.
Depois dos sete anos auxiliando mães que sofrem com a violência estatal, Solange passou a receber ameaças de policiais no bairro em que vive. Mas isso não a abate: "Esse é o sinal de que a gente está incomodando. Aprendemos a sobreviver, colocamos uma capa e vamos.”
A ideia do livro, segundo ela, é deixar um legado para o futuro: “O livro sempre foi uma vontade para outras gerações, para que as mortes dos jovens do livro não fiquem no esquecimento. Para ficar com os meus netos, meus tataranetos. Ele é um pedacinho de cada filho nosso.”
O livro Mães em luta está em pré-venda no site Fábrica de Cânones.