Era madrugada do dia 1º de dezembro de 2019 quando as batidas de funk do baile da DZ7, na favela de Paraisópolis, em São Paulo, foram substituídas pelos tiros de bala de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e golpes de cassetetes proferidos por policiais militares. A multidão de mais de 5 mil pessoas correu, mas se deparou com rotas de saída fechadas.
Numa tentativa de fugir das agressões, corpos se espremeram na Viela do Louro. Os 2,78 metros de largura do começo do beco se afunilaram para 1,71 metro até a saída, que também estava cercada pelos agentes. Faltou espaço, sobraram pessoas.
Mesmo encurralados, muitos conseguiram sair dali com vida, mas nove deles já estavam desacordados no chão. Mais de três anos e meio depois, as testemunhas e familiares das vítimas vão começar a ser ouvidas pela Justiça.
Será realizada nesta terça-feira, 25, no Fórum Criminal da Barra Funda, a primeira audiência de instrução - destinada à coleta de provas - do processo instaurado contra 12 policiais militares envolvidos no que ficou conhecido como o Massacre de Paraisópolis. O episódio envolveu 31 agentes do 16º Batalhão da Polícia Militar do Estado de São Paulo, que participaram da chamada Operação Pancadão dentro da favela da zona sul.
Segundo a corporação, dois homens que viajavam em uma motocicleta teriam efetuado disparos contra os agentes, que perseguiram a dupla até o baile da DZ7, causando tumulto onde mais de 5 mil pessoas estavam reunidas.
Famílias contam outra versão
A versão das famílias é distinta: elas alegam que os policiais bloquearam as ruas para reprimir o baile funk com balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo. Cercados e desesperados, os jovens tentaram fugir do tumulto, mas a PM fechou possíveis rotas de saída. A ação teria sido uma resposta à morte do sargento da PM Ronald Ruas Silva, ocorrida nas imediações de Paraisópolis um mês antes.
Foi na Viela do Louro que muitos dos jovens se aglomeraram para fugir da violência policial. Uma das vítimas morreu por traumatismo e as outras oito por asfixia. Foi o caso de Denys Henrique Quirino da Silva.
"O dia que eu sepultei o meu filho, eu fui sepultada junto com ele", diz mãe de uma das vítimas
Nascido na Brasilândia, zona norte de São Paulo, Denys era o terceiro de quatro irmãos. À época, o jovem de 16 anos trabalhava em uma empresa de limpeza de tapetes e sofás, localizada no bairro do Limão, zona norte de São Paulo. Frequentador assíduo dos bailes, no dia do massacre, terminou o expediente e foi direto para a DZ7.
"Naquele sábado, eu levei ele até o trabalho dele pela manhã. Foi a última vez que eu vi o meu filho com vida", relembra a mãe, Maria Cristina Quirino.
Maria Cristina ficou acordada a noite toda esperando o filho chegar em casa, pois não sabia que o jovem tinha ido ao baile funk. Era por volta de 8h da manhã quando ela recebeu uma ligação do Hospital Campo Limpo, para que algum familiar comparecesse à unidade.
"Quando eu cheguei, eu recebi a notícia de que o meu filho tinha sido morto numa ação da polícia que tentava acabar com o baile em Paraisópolis", lembra. Lá, Maria Cristina e outras famílias foram informadas de que precisavam ir à delegacia. "Foi aí que começou todo o transtorno", acrescenta.
Luta em meio ao luto
Em meio ao luto, a mãe começou a se mobilizar junto às outras famílias por justiça às vítimas. "Quando caiu a minha ficha do que tinha acontecido, eu determinei pra mim mesma que eu ia provar a verdade do que fizeram com o meu filho", conta ela, em entrevista ao Terra.
Maria Cristina trabalhou de forma voluntária junto ao Centro de Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (Caaf-Unifesp) na investigação do caso, até que, em novembro do ano passado, passou a ganhar uma bolsa para se unir à equipe de pesquisa. "Pra mim não é uma conquista. Para mim, é uma obrigação, com bolsa ou sem bolsa. Eu tenho que estar neste lugar, porque eu preciso provar a verdade, eu preciso manter viva a memória do meu filho", diz.
Um relatório do Caaf, feito a pedido da Defensoria Pública, concluiu que os jovens aguardaram mais de meia-hora até serem resgatados por apenas uma ambulância liberada pela PM. O documento aponta ainda que as vítimas já chegaram mortas ao hospital.
Além da dor irreparável de perder o filho, Maria Cristina também perdeu o emprego e quase perdeu a casa onde morava. Na época do episódio, ela trabalhava como vendedora em uma loja de onde acabou saindo tempos depois. Sem renda, não conseguiu arcar com o aluguel e quase foi despejada. A solução foi se mudar para a casa do pai, recém-viúvo.
Maria Cristina chora enquanto lembra a dor da perda, que sente há quatro anos.
"Eu não tenho mais vida. O dia que eu sepultei o meu filho, eu fui sepultada junto com ele. Eu perdi todo o sentido da vida. Aquela Cristina não existe mais. Essa Cristina que está falando com você é a mãe que luta por justiça, uma justiça que pra mim não é justa, porque o meu filho não vai voltar, mas eu tenho que estar de pé todos os dias porque preciso mostrar que eles mataram meu filho, que era inocente".
Às vésperas da primeira audiência do processo instaurado contra 12 policiais militares envolvidos no Massacre de Paraisópolis, Maria Cristina tem expectativas de que os agentes serão, finalmente, condenados pelas mortes.
"A expectativa é única para todos nós [familiares das vítimas]: que o juiz entenda que foi um crime arquitetado por eles [policiais militares]. Que houve, sim, a intenção de matar os nossos filhos. Que o juiz entenda que tem que ir para júri popular, porque teve a intenção de matar os nossos filhos desde o início", espera a mãe.
Entenda o processo
Apesar de passados mais de três anos desde o Massacre de Paraisópolis, o advogado Dimitri Sales, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE), explica que o tempo está dentro do esperado.
"Essa demora se deu pelo curso do próprio processo. Não houve leniência ou tentativa de impedir o andamento de forma proposital. É parte das normas de processo penal", reforça.
O Massacre de Paraisópolis é apurado em duas esferas criminais: na Justiça comum e na Justiça Militar. Em fevereiro de 2020, a Corregedoria da Polícia Militar pediu o arquivamento da investigação sobre a conduta dos 31 policiais militares envolvidos no episódio. O órgão concluiu que os agentes agiram de maneira lícita e em legítima defesa.
"Causa vergonha a Corregedoria da Polícia Militar chegar a essa conclusão. Houve uma operação que foi montada para repreender o baile funk, as saídas estavam fechadas na parte final, o que levou à morte dos jovens. Essa operação fugiu dos protocolos da Polícia Militar e as mortes foram decorrentes da própria situação", argumenta o advogado.
A tese foi afastada pela Polícia Civil em julho de 2021. No relatório de indiciamento, o delegado Manoel Fernandes Soares, do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), indiciou nove PMs por homicídio culposo, quando não há intenção de matar.
Já o Ministério Público do Estado de São Paulo divergiu do DHPP. Os promotores Luciana André Jordão Dias e Neudival Mascarenhas Filho denunciaram 13 policiais militares que participaram da operação por homicídio com dolo eventual, quando se assume o risco de matar.
A denúncia foi aceita pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que tornou 12 policiais militares réus. O 13º agente foi denunciado por uso de artefato explosivo. Já os outros policiais que participaram da ação em Paraisópolis tiveram o inquérito arquivado pelo TJ após pedido do MP-SP, que entendeu que não foi possível individualizar a conduta de todos os 31 agentes. Todos os acusados respondem ao processo em liberdade.
O passo seguinte à audiência marcada para esta terça-feira será ouvir as testemunhas de defesa e os policiais acusados, o que ainda não tem data para acontecer. A partir disso, o juiz responsável pelo caso vai decidir se os réus serão levados ou não a júri popular (por se tratar de acusação de crime doloso contra a vida).
Além disso, há também a tramitação de procedimentos administrativos que podem resultar em punições aos agentes, como a expulsão da corporação.
"No entendimento do CONDEPE, que é um entendimento também compartilhado pelas famílias, o procedimento administrativo independe da conclusão da Justiça Militar e da conclusão da Justiça comum. A própria Secretaria [da Segurança Pública] poderia levar adiante e fazer a sua conclusão. Mas é bem possível que ela espere o resultado dos outros processos", diz Dimitri Sales.
Em nota enviada ao Terra, a SSP informou que "os inquéritos civil e militar sobre o respectivo caso foram concluídos e remetidos ao Poder Judiciário. Um dos indiciados não mais integra os quadros da Polícia Militar e os outros 12 seguem afastados das atividades operacionais de policiamento até a conclusão do trabalho judicial".