Cria de Imbariê, no município de Duque de Caxias, na baixada fluminense, Rafael Ramires Baptista, 25, estava desempregado quando percebeu uma demanda cada vez maior da própria comunidade: aprender e usufruir das tecnologias. Foi em 2019, junto com outros três amigos, que ele começou a passar adiante seus conhecimentos na área em que já havia trabalhado. Familiares, vizinhos e outras pessoas em situação de vulnerabilidade, que souberam dos serviços oferecidos, batiam na porta da casa dele para aprender a mexer no computador, no celular e tirar dúvidas do mundo digital.
Desde então, Rafael assumiu o compromisso de tentar mudar este cenário a partir da criação da InfoCria. A iniciativa de Duque de Caxias se junta a outros dois coletivos que nasceram em São Paulo, a rede perifaCode e o podcast Quebradev, na ideia de difundir a educação tecnológica popular, as oportunidades no mercado de trabalho e serem referências às pessoas periféricas.
“Eu estava começando a me formar mais politicamente, me conscientizar sobre classe e questões de raça também e com isso eu não consegui mais olhar para a tecnologia com o olhar que eu tinha antes de algo incrível, inovador, mas também como uma coisa que na mão das pessoas erradas podia piorar a realidade que eu e as pessoas onde eu moro vivem”, conta.
Rafael decidiu expandir a sua ideia e pesquisar formas de fazer a inclusão digital para além do acesso à internet. A partir do Labic (Laboratório de Inovação Cidadã) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Infocria se firmou como um coletivo que trabalha a autonomia digital da população periférica. Durante a pandemia, Rafael realizou mentorias online e se juntou à equipe formada por outras sete pessoas para oferecer o Ciclo Formativo em Habilidades Digitais para o público de 14 a 22 anos e apoiou tecnologicamente eventos periféricos.
“A gente montou quatro oficinas que trabalhavam explicando o que é a internet e o nome era ‘Facebook é a internet?’, pois vimos uma pesquisa que mostrou que se você perguntasse ‘o que é a internet?’, mais da metade dos brasileiros responderam que era o Facebook. Achamos esse dado muito chocante porque o Facebook não é a internet e sim faz parte dela”, relembra.
O objetivo principal, segundo ele, é trabalhar justamente os conceitos mais básicos de rede, os riscos do meio digital, como a desinformação, e apresentar o vasto mercado de trabalho da área. “Dentro das oficinas vimos a potência de falar sobre isso, pois já existe interesse nas pessoas em entender sobre essas coisas, e a oportunidade de levar essas oficinas para idosos, pessoas de diferentes áreas agora em 2022”, projeta. Os próximos ciclos de formação devem acontecer em terreiros e igrejas de comunidades do Rio de Janeiro.
“A gente ainda está em uma realidade no Brasil em que famílias dividem o celular para ter acesso ao mundo digital e falar sobre autonomia digital é um pouco complicado. Ter autonomia é ter seu próprio aparelho e ter o domínio sobre ele, entender como funciona, o que ele pode impactar e quais vidas ele impacta”, explica. Neste cenário, Rafael fez da sua casa o local onde a InfoCria segue atuando com empréstimo de computadores e trocas de equipamentos entre os moradores de Imbariê a fim de capacitar novos “crias”.
Para ele, investir na educação e o uso crítico da tecnologia permite que as pessoas consigam identificar e se proteger de ataques e violências sistêmicas que acontecem na internet. “A gente não faz revolução sem profissão. A gente não pode ficar esperando que quebre a indústria e que nunca mais se reproduza tecnologia racista. Existe uma corrida que a gente precisa ficar atento, não necessariamente correr junto, mas informar e trazer essa educação para os nossos de que não precisa ter medo da tecnologia e que podemos nos apropriar dela”, pontua Rafael.
Comunidade periférica no meio digital
Desde 2007, William Oliveira, 31, criado na periferia de São Bernardo do Campo (SP) se envolveu no universo da tecnologia e sentiu a necessidade de uma rede de apoio entre programadores que partiram de uma mesma vivência longe do centro. Para isso, William percebeu que precisava mudar a perspectiva em relação à profissão e passar a ensinar a própria comunidade.
A partir de um grupo de programadores, o perifaCode nasceu para dar suporte às pessoas que atuam e querem entrar na área e ser um espaço de troca de experiências e projetos. Hoje, já são mais de 1.200 membros na comunidade criada no Discord. Segundo William, o projeto foi uma construção coletiva: “quando a gente fala de comunidade de tecnologia, a gente lembra de software livre. O código existe e ele é aberto ao grupo. A coordenação que tiver vai sempre seguir as diretrizes”.
Dentro do grupo, surgem vagas de emprego, dicas de como seguir na carreira, conversas sobre as dificuldades enfrentadas no cotidiano. William compartilha um pouco da sua experiência no livro O universo da programação (2018), que traz um guia para iniciantes e interessados em um bootcamp (curso de imersão na profissão).
Responsável pelas parcerias, Glauber Castro conta que o perifaCode também realizou eventos para unir pessoas que não consideravam trabalhar com tecnologia uma possibilidade. “É muito difícil pois essas pessoas não tinham nem em quem se espelhar para falar ‘vou ser que nem o meu primo, que trabalha com computador’. Hoje, o foco é trazer referências para elas, ter alguém da periferia em eventos, para elas entenderem que esses espaços também são delas”, afirma.
Uma das pessoas acolhidas, Bruna Chris Santos fez cursos em informática e viu a oportunidade de trabalhar na área a partir do momento em que encontrou pessoas como ela, mulheres negras, que conseguiram conquistar espaço no mercado. “Eu nem sabia que existia esse foco de mulheres em tecnologia”, ela conta.
Foi a partir de uma palestra que ela conheceu diversas comunidades, entre elas a perfiCode, em que entrou para o grupo de organizadores. A desenvolvedora acredita que a inclusão digital passa por um trabalho boca a boca dentro das comunidades periféricas e fala de como tem apresentado esse assunto aos moradores e mães de colegas de um curso de inglês: “Eles estão do meu lado e parece que é um outro mundo. E eu falo ‘Do mesmo jeito que vocês sofriam para pegar um ônibus para trabalhar de madrugada, eu também sofri’. Então, foi através da tecnologia que eu vi uma forma de melhorar uma coisa que gosto de fazer e melhorar a vida da minha família”, relata.
Tecnologia, política e sociedade em pauta
A comunicação como uma das chaves para pautar a inclusão digital nas quebradas também se tornou foco de um projeto que partiu da ideia de grupo de três amigos que trabalham como desenvolvedores. Em 2018, Kaio Teixeira, Reginaldo Junior e Gustavo Castilião viviam realidades bem parecidas nas periferias de São Paulo e sempre tiveram que enfrentar problemas relacionados ao preconceito, à locomoção dentro da cidade e sentiam a falta de poderem falar sobre essas questões. “Nesses problemas a gente tinha um incômodo e precisava botar para fora. Comecei a causar na dos meninos para a gente consumir podcasts, para aprender coisas, enquanto a gente estava no ônibus”, conta Kaio.
“A gente sentiu a necessidade de ouvir quem se expressava assim, de ouvir conteúdos que a gente sentia certa familiaridade. No podcast, as pessoas não falavam como a gente falava, não ouviam as músicas que a gente ouvia, não tinham referências parecidas com as nossas, embora os conteúdos fossem muito bons”, explica.
Já nos primeiros episódios, o podcast Quebradev uniu temas de tecnologia, política e cultura para falar diretamente com quem mora nas quebradas. Pouco tempo depois, Lucas Silva, Willian Viana, Thassia Lima e Debora Rocha se juntaram ao grupo de apresentadores. “A gente vê que a área da tecnologia é ainda um espaço com muitos homens brancos, cis e héteros, por isso é importante ouvirmos histórias parecidas com as nossas”, aponta Lucas.
Essa visão periférica sobre a tecnologia é uma visão crítica para o assunto. Lucas aponta que muitas vezes o que se fala sobre o mercado de trabalho, da quantidade de vagas, não se encaixa para todos os públicos pois não leva em consideração os diversos obstáculos que mulheres, pessoas negras, LGBT precisam enfrentar por exemplo.
O podcast mostra que antes da tecnologia, existem outros problemas sociais, como a falta de renda, a precarização do trabalho, que dificultam essa caminhada. “Não existe inclusão dentro do sistema capitalista”, opina Kaio. Para ele, esta realidade só será mudada com a redução da desigualdade e a ocupação destes lugares por pessoas periféricas.
“A gente usou essas ferramentas para tentar construir, abrir novas possibilidades e para fazer com que as pessoas se sentissem seguras na área de trabalho, seguras em eventos, em saber que tem outras pessoas que passam pelos mesmos problemas que elas”, completa.