“Fazer sem poder significa a arte de fazer tudo sem poder fazer nada”, explica o articulador cultural Fernando Carvalho, 43, conhecido como Negotinho Rima. Fundador do coletivo São Mateus em Movimento, Negotinho destaca a maneira como uniu a revolta com a vontade de mudar a favela Vila Flávia, em São Mateus, na zona leste de São Paulo.
Negotinho nasceu no bairro de Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte da cidade, e mudou-se para a Vila Flávia quando tinha um ano de idade. Criado pela mãe, Vera Moraes, e pela avó, Alice Moraes, ele atribui aos homens mais velhos da rua a forma como aprendeu a lidar com a sociedade e enfrentar a criminalidade das décadas de 1980 e 1990.
“Aqui em São Mateus tinha muito grupo de extermínio naquela época. Nós somos daquela geração marcada para morrer. Mas fui criado pela malandragem, por isso que hoje tenho respeito com o ser humano. É muita responsabilidade”, diz.
Por meio do esporte e da cultura hip hop, Negotinho encontrou maneiras de sobreviver. Aos 12 anos, começou a praticar capoeira; aos 15, entrou em um grupo de rap. Concluiu o ensino fundamental, mas não prosseguiu com os estudos.
“Não poderia ter corrido da escola, mas como já sofria um certo tipo de opressão lá, então colocava tudo no mesmo pote. Tanto a polícia quanto a escola não eram boas para nós”, justifica.
Aos 20 anos, Negotinho dava aula de capoeira na laje da casa de Dona Vera. Ao mesmo tempo, o articulador cultural fazia parte do grupo Rima Fatal da Leste. A partir da música “Ação Contra o Estado”, escrita em 1999, ele sentiu que as ações deveriam tomar o lugar das palavras.
“A gente estava cantando e não estava sentindo o efeito, principalmente no próprio território. Então, tive a ideia de começar a materializar a nossa própria música”, relembra Negotinho.
No começo dos anos 2000, começou a desenvolver atividades na comunidade. “Já fazia um trabalho social. Treinava capoeira e ensaiava também as nossas músicas. Outros grupos da região também colavam para ensaiar. Então nós já tínhamos um polo cultural.”
E, em 2007, da união do grupo de rap Rima Fatal da Leste com os integrantes do coletivo de grafite OPINI nasceu o São Mateus em Movimento, na laje de Dona Vera.
“A gente lançou o São Mateus em Movimento com forma de protesto, porque aqui na Vila Flávia não tem praça, não tem quadra, não tinha um ponto de cultura”, argumenta Negotinho.
Atualmente, o São Mateus em Movimento oferece capoeira, musicalização com flauta doce, violão, bateria, baixo, guitarra e leitura de partitura, e oficinas de artesanato e grafite. Há também espaços com sala de informática e biblioteca.
As oficinas de grafite rolam às segundas às 16h e a flauta doce às 18h. As aulas de artesanato são às terças às 17h. Às quartas têm atividades de bateria, às 15h, e cordas, às 19h. E às quintas acontecem as aulas de capoeira às 19h. As oficinas são ministradas por professores voluntários e chegam a atender cerca de 70 crianças.
Os mais de 500 livros podem ser retirados na biblioteca com a apresentação de documentos.
Ao longo dos 16 anos, cerca de 1.200 jovens e crianças passaram pelo São Mateus em Movimento. As atividades do ponto de cultura impactam diretamente a vida de seis mil pessoas na favela Vila Flávia, onde vivem mais de 30 mil moradores.
Negotinho fala da felicidade em ver crianças e jovens que passaram pelo São Mateus em Movimento com a vida encaminhada, e reflete sobre a caminhada.
“Hoje, a gente pode falar que não somos professores do mundo acadêmico, mas a gente dá aula de vivência mesmo na prática para professor de universidade. A rua te ensina o respeito e com o respeito você faz tudo”, argumenta Negotinho.
O São Mateus em Movimento se mantém por meio de editais públicos, parceria com empresas e doações. É possível acompanhar as atividades, se inscrever nas oficinas e fazer doações por meio do Instagram do polo de cultura.
Mesmo com as crianças nas oficinas e as paredes grafitadas, Negotinho espera fazer mais. “Minha realização vai ser passar o bastão com todo o mecanismo andando com tudo bem acertado. Já com várias pessoas trabalhando, com várias pessoas formadas, daí talvez eu me sinta realizado”, finaliza.