Periferias brasileiras vivem sofrendo com a falta de espaços culturais em suas comunidades há muito tempo. Muitos jovens não encontram locais para aprender sobre teatro, cinema, documentários. Mas por que isso somente acontecem nas favelas brasileiras?
Todavia, projetos desenvolvidos por moradores das próprias comunidades criam alternativas para que jovens possam vivenciar experiências artísticas e culturais, como é o caso do Grupo Art’Mandaia, da capital baiana.
“Esse projeto maravilhoso, me salvou da depressão e do mundo das drogas, me ensinando a amar mais a vida”, enfatiza João Vitor Teles Nery dos Santos, 21 anos, morador do bairro de Saramandaia.
João Vitor participa do Grupo Art’Mandaia (GAM) desde 2021 e fala que projetos como esse é muito importante, pois ajuda na saúde mental e auxilia no exercício do pensar.
“Grupos com esse direcionamento é muito importante, já que muitas pessoas possui uma mente muito limitada em relação a equipes, ou seja, são tímidas. O projeto ajuda a desenvolver a coletividade. Além disso, outro ponto importante é ajudar curar doenças psicológicas que foi o meu caso. O Art’Mandaia é uma maneira legal e divertida de ocupar a mente”, conta.
O jovem trabalha como Auxiliar de escritório e diz que aprendeu no grupo técnicas de teatro, como por exemplo, o improviso, e também a trabalhar mais em equipe. Já fiz um curta chamado "Volta ao Lar" e outro chamado Portas". Sigo no grupo com muito amor e carinho”, afirma.
Outra jovem que já participou do grupo foi Emilin Santa Clara dos Santos, 23 anos. Ela destaca que projetos como esses são de fundamental importância em nossas comunidades, já que são essas oportunidades que os jovens têm através da cultura e da educação.
“Projetos como GAM, desenvolvidos sem ajuda de governo e demais órgãos, conseguem se manter e ainda ajudar jovens com oportunidades de trabalhos, de aprendizado e também de deixá-los longe das drogas. Com projetos assim pode nascer um grande ator (a)”, afirma.
Mesmo afastada do grupo por causa do trabalho, ela ressalta que o GAM. é muito importante na comunidade.
“O Art’Mandaia é a referência da comunidade e influência os jovens a não desistirem dos seus sonhos, a acreditar que ainda tem esperança e que as coisas vão dá certo. Nos influencia a acreditar no amanhã melhor. Por isso, penso em retornar as atividades o mais rápido possível, fala entusiasmada.
Emilin Santos, que trabalha como Bartender e mora na comunidade de Pernambués, teve uma participação bem ativa no grupo, pois ela foi atriz e ajudava a divulgar o projeto nas redes sociais.
“Eu tive uma das experiências mais incríveis na minha vida. Participei como atriz: atuei em filme e série. Além disso, conheci o que acontece por trás dos bastidores, como funciona a preparação até a filmagem dos vídeos, foi incrível”, conta.
O projeto entrou na vida da atriz, através de amigos e das redes sociais. “Escolhi o Art’Mandaia porque é um projeto diferenciado. Conheci o grupo por meio de amigos e rede sociais, fiquei mais feliz em saber que o projeto era no meu bairro. Para mim foi uma grande honra e gratidão por fazer parte do grupo.”
O aprendizado dela foi grande, já que aprendeu no grupo várias técnicas de teatro e preparação artística. “O projeto é muito importante e especial para mim, pois promove oficinas e cultura para o bairro. Tudo isso agregou-se na minha vida e também dos jovens das comunidades, gerando oportunidades de uma preparação para o mundo do teatro e afastando os jovens das drogas”, declara.
Art’Mandaia
“O nosso espaço é de aprendizagem e atuação comunitária, dando voz e espaço de fala as crianças e jovens que historicamente foram excluídos dos grandes centros culturais e artísticos da cidade, seja por motivo da organização espacial da cidade ou por falta de incentivo à cultura”, diz Lúcio Lima, 28 anos, fundador do Grupo Art’Mandaia.
O idealizador do projeto conta que queria criar um espaço com ações voltadas prioritariamente para a juventude negra da periferia. Ele buscava desenvolver um projeto que fosse mais que um entretenimento para o local e o público.
“Queria criar um projeto que fosse mais que um entretenimento para o local e o público que é muito importante também, mas que fosse além de entretenimento. Minha intenção é levar, diversão, arte e humor, tudo isso com reflexão. Para a gente pensar na arte e cultura como aquele que espelha cada vez mais as necessidades e as realidades humanas, este é o ponto principal do GAM. Dialogar e potencializar as histórias desses jovens, artistas e bairros populares da cidade”, conta.
O cineasta e ator Lúcio Lima nasceu no bairro de Saramadaia, porém reside na comunidade vizinha, em Pernambúes. O jovem é documentarista Licenciado em Teatro pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Lima tem uma intensa ligação com documentários e séries. No cinema, estrelou o longa metragem Trampolim do Forte (João Rodrigo Mattos) e João & Vandinha (Aurelio Glimaldi). Na televisão, atuou nas séries: As Histórias de Jajá, O Pequeno Gigante e A Música da Minha Vida. Ele também é formado em interpretação teatral pelo Sitorne Estúdio de Artes Cênicas, no qual atuou em diversos espetáculos.
Além disso, no filme Trampolim do Forte, recebeu indicações para o Prêmio FIESP-SESI em São Paulo, Festival de Cinema do Rio de Janeiro (FESTRio) e Festival dos Sertões no Piauí, no qual foi premiado, entre outras premiações.
É com essa vasta experiencia que ele comanda o Art’Mandaia, - um Grupo de Arte e Cultura, focado principalmente no protagonismo juvenil, buscando a autoafirmação das comunidades.
“Por não concordar com o imaginário social construído sobre eles (comunidade), visto unicamente como lugar de perigo, violência e miséria adotamos no grupo de Teatro Art’Mandaia a base teórica do Teatro do Oprimido, metodologia criada por Augusto Boal nos anos de 1960, que potencializa o teatro como ferramenta de trabalho político, social, ético e estético, contribuindo para a transformação social”, destaca.
O grupo recentemente foi reconhecido como Ponto de Cultura pela Secretaria de Cultura da Bahia.
“Esse reconhecimento foi de extrema importância para o GAM, mas outras conquistas também potencializaram o projeto, as peças de teatro realizadas e as diversas parcerias com profissionais renomados que voluntariamente estão contribuindo para a continuidade do grupo, como Roberto Salles, Nida Amado, Jedjane Mirtes e Reinaldo Oliveira”, fala agradecido.
De acordo com Lúcio Lima, o GAM ganhou algumas conquistas artísticas, principalmente em teatro e cinema, como os documentários: Retalhos – a memória Viva de Saramandaia, Quilombo Urbano, o curta metragem de ficção Portas, a série Deu o Nome, com realização da TVE e que teve como atores principais os artistas do Art’Mandaia.
“Todos esses projetos tem um potencial educativo, na medida em que ofereceu aos moradores da comunidade e, principalmente, às crianças, o conhecimento sobre a história do bairro, de personalidades influentes, possibilitando-os construir novas narrativas. Uma das conquistas do Art’Mandaia foi entrar para a Caravana Teatro Itinerante da Chapada Diamantina, sendo atualmente a única represente de Salvador no encontro que acontece cinco vezes ao ano em cidades diferentes da Chapada”, conta alegremente.
Embora o projeto crie alternativas para os jovens das comunidades, sendo um grupo importante no desenvolvimento da arte e cultura local, o GAM não recebe recursos e nem incentivos. Com isso, diz Lúcio, que já pensou muitas vezes de não continuar com o projeto, no entanto a vontade de transforma a vida dos jovens o mantem firme no grupo. “Já dialogamos muitas vezes para repensar a continuidade do projeto e com a pandemia isso se agravou, porém nos mantermos firmes e dispostos a continuar transformando vidas.”
O maior desafio do Art’Mandaia, segundo Lima, é se manter ativo e focar em conquistar novos membros que queiram produzir arte e cultura. Além disso, potencializar a arte comunitária como instrumento de transformação social.
“O panorama atual é o esquecimento total do poder público a grupos e espaços como o do Art’Mandaia e essa realidade dos projetos culturais das periferias é grave e deve ser discutida, precisamos conquistar novos parceiros que possam investir e incentivar esses projetos a continuarem tentando quebrar toda a visão marginalizada que existe dentro desses bairros de baixa renda e, revelar talentos, histórias fantásticas, fomentar a arte realizada dentro da periferia e a formação de plateia”, afirma.
Ele explica que o grupo desenvolve cultura nas comunidades por meio do imaginário social construído sobre o bairro que é permeado de preconceitos, visto como lugar de perigo, violência, miséria e pobreza.
“Esse imaginário também tem relação com as representações estereotipadas históricas acerca da população negra residente nas favelas, por isso o Art’Mandaia desenvolve ações de teatro, dança, exibição e produção de filmes (documentários e ficção), oficinas temáticas, sempre com a intenção de projetar e construir novas narrativas”.
O jovem ainda diz que os projetos desenvolvidos pelo grupo apresentam a vida cotidiana de beleza, alegria, arte e luta da comunidade. Com câmeras, textos e espetáculos mais focados nas questões raciais, como exemplo do documentário Retalhos – A Memória Viva de Saramandaia, que projetou as percepções, as brincadeiras de criança, as histórias de vidas de moradores e as atividades artísticas e culturais. “A aposta é em uma produção cultural que oportunize os sujeitos a reinventarem suas histórias, assim contribuindo para a promoção da igualdade racial e superação do racismo”, afirma.
Duas vezes por ano o GAM abre inscrições para novos membros em um processo intitulado de “Processo de identificação”.
“Após divulgação e período de inscrições, enviamos um formulário virtual para conhecermos a criança, jovem e a sua família. É obrigatório que essa criança ou jovem estejam estudando regulamente”.
O Art’Mandaia atua desde 2011 nas comunidades de Saramandaia e Pernambués, e já alcançou um total de 326 alunos.
“Atualmente o projeto está impossibilitado de utilizar a sua sede própria, que passa por reformas desde 2019. Contudo, conseguimos o apoio da Escola Estadual Professora Mariinha Tavares, que emprestou o espaço para nossos encontros e atividades aos sábados pela manhã, contribuindo para a continuidade do projeto. A escola é localizada entre Saramandaia e Pernambués”.
Lúcio fala que o sonho do Art'Mandaia é ter o espaço próprio e ativo. “Recentemente criamos uma vaquinha virtual para acelerar as obras da nossa sede, que está completamente parada desde 2019. Uma das habilidades mais notáveis das periferias é a seu potencial para reinventar-se utilizando estratégias que interferem diretamente na estruturação social, política, econômica e cultural.
Lima esclarece que o Art'mandaia oferece cursos e oficinas voltados para a comunidade com participação de jovens oriundos de duas comunidades: Pernambués e Saramandaia.
“O Art’Mandaia não oferece cursos e oficinas apenas para jovens negros. O grupo desenvolve projetos e iniciativas voltados para a comunidade de seu entorno e conta com a participação de jovens oriundos preponderantemente de duas comunidades”
Em 2010, dados do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), evidenciou que o bairro de Pernambués, em termos quantitativos, conta com o maior contingente populacional formado por negros (pretos e pardos). Pernambués hoje é o bairro mais negro de Salvador.
“Esse panorama não é diferente em Saramandaia e em outras periferias de Salvador.
Conheço pessoas negras que nunca entraram em um grande teatro ou cinema da cidade, pois se sentem intimidados, como se aquele lugar não lhe pertencesse. Nossa estratégia de atração diz claramente a essas pessoas que elas são bem-vindas, o que cria uma natural identificação e adesão, o que em si explica o maior fluxo de pessoas negras que se vinculam ao grupo”.
Ainda de acordo com o IBGE, Saramandaia possui uma população de 12 mil habitantes, sendo 89,59% de cor ou raça negra, que ainda convivem com a falta de infraestrutura e saneamento básico, alto nível de violência e uma das mais altas taxas de analfabetismo entre a população com 15 anos ou mais de idade.
O cineasta manda uma mensagem para aquelas pessoas que precisam de coragem para vencer na vida.
“Faça teatro, faça arte. Acredito que a arte transforma e edifica a vida das pessoas. O Teatro é uma arte coletiva, como tal precisa estabelecer uma relação entre as pessoas que o praticam e quem o assiste. Em um momento tão crítico e sombrio da história do nosso país, a arte e a cultura nos ajudam a ter esperança de dias melhores e seguir adiante”, finaliza.