Nascido e criado na Restinga, bairro periférico de Porto Alegre (RS), Alê Garcia é um homem de inúmeros talentos, todos ligados à palavra. Publicitário e escritor de ficção, é autor de livros como A sordidez das pequenas coisas (Não Editora), finalista do Prêmio Jabuti e vencedor no Prêmio Clarice Lispector da Fundação Biblioteca Nacional. Em 2019, resolveu se aventurar pelas ondas virtuais, com o podcast e canal do YouTube Negro da Semana. Em 2020, foi nomeado pela revista Forbes um dos 20 creators negros mais influentes do país. Além disso, é apresentador do portal Omelete e comenta premiações do audiovisual, entre outras conquistas.
Agora, em 2022, é a vez de Alê se aventurar pelas letras da não-ficção. Derivado do seu podcast, ele lançou neste mês na Bienal do Livro de São Paulo Negros Gigantes: As personalidades que me fizeram chegar até aqui. O livro traz perfis de nomes importantes para a negritude na arte, cultura e política, do brasil e dos EUA — a lista vai de nomes como os rappers Mano Brown, Sabotage e Emicida a líderes como Martin Luther King e a deputada estadual e sambista Leci Brandão (PCdoB-SP), passando por nomes do audiovisual como Spike Lee e Ruth de Souza.
Em entrevista à Ponte, Alê conta que o processo de escolher quem entraria no livro passou por um escolhas estratégicas e uma lógica cronológica. “Foi olhar pra dentro e ver quem, da minha infância aos meus dias de hoje, foi, indiscutivelmente, uma grande inspiração e serviu para meu empoderamento”, conta, admitindo que foi doloroso deixar outras personalidades de fora. “Espero em volumes futuros falar de Jorge Ben, Angela Davis, Zadie Smith, Cartola, Stevie Wonder, Muhammad Ali, Zezé Motta, Tim Maia, John Coltrane, Viola Davis, Maria Firmina dos Reis, entre tantos outros”, lista.
Sobre o racismo ainda existente no seu estado natal, Alê acredita que “lá somos mais invisibilizados do que no resto do país. Por ser uma região com grande número de imigrantes italianos e alemães, colonizadores em diversas cidades, foi para eles que se escolheu entregar os louros da cultura gaúcha. A tal ponto que não se sabe como o Rio Grande do Sul é um dos estados com mais localidades quilombolas do Brasil”.
Mas se depender do criador de conteúdo, essa história vai mudar. “Eu tenho uma dívida grande com a produção de conteúdo dando conta da preponderância negra no Rio Grande do Sul, numérica e cultural”, afirma, prometendo realizar no futuro próximo uma nova série de podcasts ou uma série documental em vídeo abordando a cultura negra gaúcha.
Leia a entrevista completa abaixo
Ponte: Como foi nascer negro no Rio Grande do Sul? Como era a relação da sua família com a questão racial?
Alê Garcia: Sou gaúcho, de Porto Alegre. Até a minha adolescência, quando comecei a sair do bairro onde passei minha infância, ser negro em Porto Alegre era uma grande dádiva. Isto porque cresci em um bairro periférico de maioria negra, a Restinga. Um bairro que, ainda periférico, sempre foi muito estruturado, muito completo. E lá, as realizações eram negras: é sede da maior escola de samba de Porto Alegre. As aulas de capoeira no Centro Comunitário, os amigos negros na escola pública.
Em casa, eu estava cercado de livros e de muitos discos de músicos negros, o que só me trazia a certeza da nossa excelência. A relação sobre a questão racial com a minha família, neste momento, era mais subjetiva que objetiva, uma vez que nossos eventos eram as clássicas reuniões de famílias negras, com muito samba e churrasco. Então, as questões mais objetivas se encontravam em pronunciamentos, do tipo "você precisa ser dez vezes melhor", o que só não me trazia o peso que esta frase comumente tem porque eu cresci com a certeza da nossa excelência e, portanto, da minha capacidade.
Você acredita que o racismo brasileiro se manifesta de maneira diferente na região Sul? Na época da Semana Farroupilha recentemente tem se voltado a discutir a participação (e as traições contra) os negros na história do estado — acredita na importância desse debate? O que é preciso para se demover em alguma medida esse racismo sulista?
Sim, o racismo se manifesta de forma diferente no Rio Grande do Sul. Acredito que lá somos mais invisibilizados do que no resto do país. Por ser uma região com grande número de imigrantes italianos e alemães, colonizadores em diversas cidades, foi para eles que se escolheu entregar os louros da cultura gaúcha. A tal ponto que não se sabe como o Rio Grande do Sul é um dos estados com mais localidades quilombolas do Brasil.
Quem é que diz ou quem sabe que o Rio Grande do Sul tem o segundo menor percentual de população negra do país e é o estado com o maior número de pertencentes a religiões de matriz africana do Brasil? A quem interessa divulgar estes fatos?
Além, obviamente, de fatos como o que você citou: a comemoração da Revolução Farroupilha é a comemoração de uma guerra que foi perdida e na qual homens negros, os Lanceiros Negros, foram atraiçoados, colocados à frente de um batalhão para morrerem covardemente.
O Rio Grande do Sul é um espaço repleto de territórios culturais negros. Mas há sempre algum projeto buscando apagar nossa história. Outro exemplo: o Parque da Redenção, um dos espaços públicos mais visitados no centro de Porto Alegre, em meados do século XIX, era espaço de batuques, e o próprio nome do parque tem a ver com o fim do processo escravagista no Brasil. Então, o que tentaram? Mudar o nome do parque para Parque Farroupilha, nome que, felizmente, não se popularizou.
Outro exemplo: eu cresci vendo os desfiles das escolas de samba na Avenida Augusto de Carvalho, também no centro. Era um sambódromo que se montava e desmontava a cada ano. Mas quando resolveram criar um sambódromo oficial, o que fizeram? Jogaram os negros para a região mais distante da cidade, um local de parca infraestrutura, o complexo do Porto Seco. A desculpa: apaziguar o incômodo sonoro na região. Mas os "gaudérios" amantes da Semana Farroupilha têm à sua disposição, por um mês inteiro, um parque exatamente ao lado de onde aconteciam os desfiles, o Parque da Harmonia, fazendo seu barulho e seus eventos à vontade.
É um racismo defendido por acontecimentos culturais como este. Quando fiz um video falando dos Lanceiros Negros, o maior Centro de Tradições Gaúchas (CTG) da cidade entrou em contato comigo, fazendo um mea culpa, dizendo como é preciso valorizar a contribuição negra na cultura gaúcha. Não sei como é preciso demover o racismo sulista, mas talvez uma série de ações como esta, contando as histórias da maneira correta, ajudem no processo. Ainda que seja muito demorado.
Você pensa em produzir conteúdo dialogando com essa cultura negra gaúcha para além do podcast?
Eu tenho uma dívida grande com a produção de conteúdo dando conta da preponderância negra no Rio Grande do Sul, numérica e cultural. Ao longo dos anos, tenho colecionado informações, me nutrindo de fatos históricos que desejo muito transformar em conteúdo de qualidade sobre a presença e cultura negra no estado. De vez em quando, publico alguma coisa, mas o desejo é um projeto de mais estofo, talvez um podcast em série ou um documentário audiovisual, junto com uma plataforma web, como o projeto Querino.
Qual é a importância de se resgatar a história das personalidades negras do Brasil e do exterior? O formato podcast fez diferença para te ajudar a pensar essas questões e contar essas histórias?
Quanto mais as pessoas tiverem noção da excelência de pessoas negras, mais funcional isso será para naturalizar a presença negra. E eu faço isso trazendo histórias de personagens que realizaram e continuam realizando grandes feitos, em todas as áreas da sabedoria e criação humana, valorizando nossas criações e elementos culturais que o mundo inteiro ama, mas que não reconhece que são negros.
O formato podcast, pra mim, é maravilhoso pra isso, pois me permite entrar em profundidade em histórias que exigem atenção. E ele me permite tudo: é um documentário em áudio. Então, a partir da sonoridade, posso fazer meus ouvintes se sentirem em qualquer lugar da História.
Quem são os criadores de conteúdo negros brasileiros que te inspiram e ajudam? Quem são os colegas que você admira?
Rodrigo França, Ale Santos, Cris Guterres, Andreza Delgado, Levi Kaique, João Bigon, Sher Machado, Kaique Brito, Gleidistone, Luana Carvalho, Oga Mendonça, Queiroga, Ricardo Silvestre, Jacy Carvalho, PH Côrtes, Ashley Malia, Julia Reis, Taísa Machado... Eita, tem muita gente boa!
Você começou escrevendo ficção e agora bota no papel um trabalho de não-ficção. Quais são as diferenças para você sobre esse processo?
Na ficção, qualquer relação com algum elemento da minha vida é usada de maneira tão subjetiva e diluída que apaga qualquer possível ligação. É um exercício de construção de personagens, personalidades, locais, ambientação e tramas, de forma profunda e planejada.
A não-ficção é investigação e pesquisa. Neste caso, uma investigação da minha própria vida, mergulhando na minha formação e no impacto das pessoas reais nos meus dias. Por ser dessa forma, tem subjetividades sentimentais mas também tem elementos factuais, sobre em que momento eu me situava, mental e fisicamente, assim como aquela personalidade negra que foi importante pra mim naquele momento. E, além de tudo, é um olhar para fora: como estava o país e o mundo enquanto aquilo acontecia e como isso repercutiu na vida daquela personalidade negra e na minha.
Talvez, resumindo, escrever não-ficção a partir da minha própria vivência, foi ficar girando a cabeça para todos os lados, inclusive pro lado de dentro.
Como foi o processo de escolher quais perfis que entrariam no livro? Quem acabou ficando de fora que poderia estar em um segundo volume?
Foi doloroso, porque obviamente eu queria abarcar o maior número possível de perfis. Mas foi estratégico e cronológico. Foi olhar pra dentro e ver quem, da minha infância aos meus dias de hoje, foi, indiscutivelmente, uma grande inspiração e serviu para meu empoderamento.
Muita gente ficou de fora, e espero em volumes futuros falar de Jorge Ben, Angela Davis, Zadie Smith, Cartola, Stevie Wonder, Muhammad Ali, Zezé Motta, Tim Maia, John Coltrane, Viola Davis, Maria Firmina dos Reis, entre tantos outros.