Quando se pensava que a fila tinha acabado, mais uma pessoa, acompanhada ou sozinha, entrava nela com o livro na mão, ansiosa, e aumentava a curva, que ocupava todo o salão do Centro Municipal de Recreação e Cultura (Cemur) de Taboão da Serra, na Grande São Paulo. Ali, em meio às músicas de black music tocadas por um DJ, os olhos brilhavam e os sorrisos apareciam facilmente quando eram abraçados pelo poeta Sergio Vaz, que dividia o carinho entre redigir a dedicatória, tirar foto e abraçar o próximo da sequência. “Eu precisava desse contato e elas também”, afirma Sergio. “O livro só foi um elo para todos se conectarem em uma grande festa”, diz sorridente.
Aos 58 anos, o poeta lançou em abril deste ano sua décima obra, Flores da Batalha (Editora Global). Com prefácio do rapper Emicida, o livro reúne uma coletânea de poemas que trata da vivência na periferia após a pandemia de Covid-19. Central em todos os seus escritos, essa é a população que foi a mais afetada não só pela doença, mas também pelas dificuldades de sobrevivência que acabam se sobrepondo às escolhas individuais.
“No meu livro, eu queria resgatar essa batalha interior que todo mundo tem e que, às vezes, não tem tempo de enfrentar a si mesmo porque com a correria não dá”, afirma. “Meu livro é para lembrar as pessoas que elas têm sonhos, que têm planos, que amam, que beijam e que não são máquinas”.
Isolado durante esses dois anos, Sérgio também se viu em conflito, tristeza e em adoecimento pela situação do país e como seguir mantendo a sanidade em um período em que a comunicação por meio de telas ficou acima do contato físico. “Foi muito difícil porque eu faço poesia e, dentro da literatura, a poesia ainda é a arte menos privilegiada. E estamos falando de um país que não lê. Eu fiquei muito preocupado com o meu futuro e com o futuro da humanidade”, desabafa.
O encontro no Cemur foi o primeiro de uma série de lançamentos do Flores da Batalha ao longo de abril. E o surpreendeu: “não esperava que viesse tanta gente”, diz Sérgio, feliz. Adultos, jovens, crianças, professores, estudantes, moradores de quebradas estavam ali. Alguns adolescentes aproveitaram a discografia do DJ para criar, ali mesmo, uma batalha de dança. O estudante Wellington Carlos de Moura, 17, aproveitou o passeio escolar voltado ao evento para também fazer acrobacias de break. “Minha amiga começou a dançar e só fui dançar junto com ela”, brinca.
Para ele, aquele espaço também sintetizava uma palavra: “negritude”, disse ao mostrar diversas pessoas negras com diversos cortes de cabelo e estilo tomando conta do salão. “Ter escritores de periferia abre portas”, aponta.
O estudante Rafael Riquelme da Costa, 15, também da rede pública assim como Wellington, concorda. “Por ele ser uma pessoa que vem de uma região que a gente mora perto, a gente gosta de ver histórias de pessoas que têm a mesma vivência que a gente”, afirma. “É uma pessoa que passou por uma vida difícil, escreveu lindas poesias, como o meu livro favorito dele que é Colecionador de Pedras. É muito interessante ver como essa pessoa chegou até esse ponto e ver que muitas pessoas da periferia também podem vencer”.
Até a deputada estadual também entrou na roda que se formou. Ediane Maria (PSOL), a primeira parlamentar empregada doméstica e coordenadora do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) a alcançar uma cadeira na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), acompanhou a coreografia das meninas que lideravam o passo. “O Sergio é um cara que resiste na cultura, fazendo sarau para a periferia, para a quebrada. Prestigiar esse livro é mostrar que a gente está avançando e a cultura está voltando. A gente viveu quatro anos de retrocesso quando a cultura foi duramente atacada”, disse à Ponte.
E trazer a perspectiva da cultura como uma área importante para formação de crianças e adolescentes fez com que Sérgio criasse o projeto “Poesia contra a Violência”, em uma escola do bairro do Jardim Ângela, no extremo sul da capital paulista. Na época, em 1999, um ano antes de lançar o conhecido sarau da Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa), esse bairro era considerado um dos mais perigosos do mundo pela Organização das Nações Unidas (ONU). Os bairros vizinhos, como Jardim São Luís e Parque Santo Antônio, onde Sérgio cresceu, também apareciam nas manchetes de jornais pela violência.
Para ele, abandonar o ambiente escolar como uma responsabilidade coletiva é uma sentença de morte para todo o país e isso se reflete, também, na onda de ataques às escolas que vêm se intensificando. “Nós todos somos corresponsáveis por isso”, afirma. “A única pessoa que pensa na escola é o professor. E muito mais do que respeitá-los, nós temos que protegê-los”.
“Todos os jovens não gostam de ir para a aula. Eu nunca gostei, a gente sempre gostou de aula vaga”, lembra Sérgio, que era estudante numa época em que o Brasil ainda atravessava uma ditadura civil-militar. “Mas essa não é uma decisão da criança ou do adolescente. É uma decisão do Estado de que não é preciso investir na educação. E investir em educação é investir em educação pública de qualidade, onde a criança possa ter senso crítico”, afirma. “Existe uma máquina por trás para fazer com que o aluno desista e o professor também. O professor ainda não desistiu porque é um romântico doente, sendo assassinado, violentado, que está gritando e a sociedade pouco se importa”, crítica.
Da periferia para a periferia
Por serem negligenciadas e esquecidas, as quebradas tiveram que tomar a frente para criar mecanismos de auto pertencimento e de orgulho, aponta Sérgio. “Para conseguir emprego, tinha sempre alguém que mentia onde morava. Você imagina o que era o Parque Santo Antônio, o Jardim Guarujá, o Jardim Ângela, o Campo Limpo, Capão Redondo, Jardim São Luís nos anos 80, 90?”, lembra.
O próprio poeta passou por esse caminho e, antes de se dedicar exclusivamente à poesia, já fez de tudo. “Já fui bancário, já fui auxiliar de escritório, já fui vendedor, mesmo com livros publicados porque é difícil viver de literatura no Brasil, de poesia. Então, eu sempre recomendo para quem está escrevendo ‘fica no trabalho e só sai se o livro vingar’”, aconselha.
Nascido em Minas Gerais, ele viajou ainda pequeno com a família até São Paulo por melhores condições de vida nos anos 1970. Filho de uma dona de casa e um comerciante, Sérgio brinca que foi o único “não normal” entre os cinco irmãos, frutos de outros relacionamentos dos pais. “Só eu cresci fora da Matrix”, conta em referência ao filme de ficção científica Matrix (1999), nome de uma falsa realidade vivida pela sociedade norte-americana.
O pai, lembra, chegou a ser dono do bar Zé do Batidão, localizado na região do M’Boi Mirim, naquela época. Quase 30 anos depois, o local se tornaria a casa do sarau que co-fundou em 2000, a Cooperifa, e que funciona todas às terça-feiras no estabelecimento até hoje com declamações de poesias de quem quiser se apresentar e compartilhar seus versos. “Eu cresci no bar ouvindo histórias”, conta. “Então, eu tinha que ser poeta ou psicólogo porque, com 13, 14 anos, eu conversava com pessoas que bebiam, enchiam a cara, e choravam que nem criança, me perguntando o que devia fazer”, brinca aos risos. “A gente continua lá, ressignificando aquele bar e também a história da periferia”.
A leitura, para ele, além de ter sido um refúgio da violência do bairro, também trouxe um sentimento de solidão por não ter com quem compartilhar o gosto e por ser visto como alguém estranho por gostar de ler.
“Eu me sentia diferente até o ponto de não gostar de mim”, afirma. Dentre as obras que o impactaram estão Capitães da Areia (1937), de Jorge Amado, pela identificação com a origem dos personagens, e Dom Quixote (1605), de Miguel de Cervantes, por entender que não havia nada de errado em ser sonhador. Não à toa, além do título de “Poeta da Periferia”, é conhecido por amigos como “Dom Quixote de La Quebrada”.
Por outro lado, foi por meio da música de Geraldo Vandré, Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores (1979), um dos símbolos da luta contra a ditadura, que Sérgio entendeu o poder das metáforas e quis escrever seus primeiros versos. A temática social, contudo, veio após ler Quarto de Despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus. “Eu não tenho mais essa baixa autoestima de ser da periferia”, afirma. “Na minha época, eu queria mudar da periferia e eu descobri que eu tinha que mudar a periferia”, enfatiza.
O poeta destaca que não faz sentido escrever para não ser lido e não utilizar essa ferramenta como uma forma de mostrar a existência da periferia, reconhecer sua potência e também cobrar por mudanças.
“Tem muita gente importante na quebrada que são referências, mas elas não são conhecidas. Elas não têm likes ou seguidores, mas são pessoas que discutem o asfalto, a segurança. São pessoas que lutam incansavelmente para melhorar a comunidade”, afirma. “São motoristas de ônibus que saem de manhã e voltam à noite; meninas que moram na periferia, trabalham, vão para faculdade e chegam meia-noite na quebrada; esses jovens que querem estudar, mesmo todo mundo dizendo para ele não estudar, e ele vai, estuda, faz o Enem e vai para a faculdade”, exemplifica.
“Eu me inspiro nessas pessoas. O artista não é a única referência”, diz Sérgio. Para ele, a periferia “avançou muito culturalmente” por meio de diversas manifestações artísticas que vão dos slams às batalhas de rima, literatura, poesia e música, ainda mais com o acesso à tecnologia. E, por isso, segue fomentando sonhos e conexões olho no olho. “Tem uma poeta chamada Teresa Pina que escreveu que ‘quando você acende uma vela, a primeira pessoa que se ilumina é você’. Então o artista tem que ser essa pessoa que acende a vela para que as pessoas no meio da escuridão saibam onde está o caminho a seguir”, diz. “Acho que eu vejo a minha arte assim, como acender uma vela”.
Antes de abraçar Sérgio, a historiadora e professora Viviane Pereira César, 42, seguia na fila com o filho Guilherme, 11. Aos 17 anos, quando uma professora comentou da obra do poeta, ela não deixou mais de lado e, hoje, usa o conteúdo durante suas aulas na rede pública. “Foi a obra dele e também a poesia de Carolina Maria de Jesus que me fizeram entrar na universidade”, diz, categórica. “Me fizeram me reconhecer como mulher preta e periférica e era a obra que mais se aproximava da minha realidade”, conta. “É o que ele fala: é a dessacralização da poesia. Ele tira a poesia do pedestal e a traz para a periferia”.