“Viver no Brasil é um reviver de traumas, e isso afeta nossa relação com o dinheiro”. É o que diz a psicóloga Laura Augusta, 29 anos, sobre a frequente dificuldade entre pessoas periféricas em se organizar e fazer um planejamento financeiro quando ascendem socialmente. E dessa forma, devido ao histórico de escassez, o consumo desenfreado se torna uma fuga para compensar e esquecer as faltas de toda vida.
“É como se hoje eu estivesse trabalhando para realizar os sonhos da Ashley criança e da Ashley adolescente”, disse a jornalista e criadora de conteúdo Ashley Malia.
O Relatório sobre as Desigualdades Mundiais, elaborado pela World Inequality Lab e lançado em dezembro de 2021, listou o Brasil como um dos países “mais desiguais do mundo”, e indicou que metade da população mais pobre brasileira ganha 29 vezes menos do que os 10% da população mais rica. Diante de uma sociedade capitalista e tão desigual, os caminhos para reduzir estes efeitos se tornam limitados.
“Existem danos estruturais que por mais que a gente se movimente para fazer os nossos processos individuais de cuidado, é muito difícil reverter o quadro porque são gerações e gerações vivendo essa situação. A gente fala de desigualdade social hoje, mas nós estamos falando de um pós-abolição que nunca se encerrou, né? De uma abolição que inclusive nunca existiu”, pontuou Laura.
Como reflexo deste pós-abolição, 67% dos moradores de favelas são negros, de acordo com a pesquisa “Economia das Favelas - Renda e Consumo nas Favelas Brasileiras”, desenvolvida pelos institutos Data Favela e Locomotiva e encomendada pela Comunidade Door.
A educadora financeira, pós-graduada em educação financeira e neurociência, Cinara Santos, 39 anos, informa que diante de um contexto social tão marcante e desigual para pessoas periféricas, a terapia precisa estar associada com a consultoria financeira, visto que para muitas pessoas, consumir é uma compulsão.
"Às vezes as pessoas vão comprar porque elas precisam suprir alguma necessidade que elas não sabem o que é. E aí tem várias origens. Porque na época que era criança os pais restringiam muito, ou a família era muito pobre. Então compra hoje pra compensar. Às vezes compra muito para poder mostrar que está bem, especialmente nesta era digital. Portanto, tem várias situações psicológicas. A situação financeira é muito mais psicológica do que lógica”, garantiu Cinara.
A especialista em finanças pontua ainda que a redução das compras ou a não utilização do cartão de crédito e redução da compra parcelada são suas primeiras orientações para pessoas com esse perfil de consumo.
Na pandemia Ashley conta que ficou endividada e recentemente conseguiu pagar todas as dívidas e voltar a se estabilizar. “Quero suprir ali as vontades da criança e adolescente. Mas, o meu próximo passo, depois disso, é conseguir poupar mais dinheiro. Pensar mais no futuro, fazer mais planos”, disse.
Após diversas experiências de consumo excessivo com o dinheiro que recebia em seu primeiro emprego, o tatuador William Urbano, 24 anos, entendeu a importância de mudar seus hábitos e mudar sua relação com o dinheiro. Para ele, a falta de educação financeira é seu maior desafio para gerir seu dinheiro atualmente.
“Eu não tenho mais uma visão do dinheiro como algo para ostentar. Mas sim algo que é necessário. E a minha ideia não é acumular cada vez mais dinheiro, mas sim ter o suficiente para gerar uma renda ali que eu consiga viver bem, trabalhar menos e ter melhor qualidade de vida”, disse o tatuador.
Já para Ashley, a educação financeira ainda precisa estar aliada com a terapia. “Eu gostaria de crescer aprendendo a importância de poupar, ter consciência sobre o meu dinheiro e tudo mais. Eu acho que isso faria toda a diferença hoje porque eu vivi a vida inteira sem aprender a poupar. E pra eu chegar e fazer isso do nada é realmente muito complicado”, concluiu a criadora de conteúdo.