Conjugando a luta de classe, movimentos antirracistas e de lésbicas, contra discriminação sexual e de gênero da capital mineira são marcados pelo pioneirismo.
Em 1972, a cantora Leci Brandão se tornou a primeira mulher a entrar para o time de compositores da Estação Primeira de Mangueira, causando fissuras em um universo reconhecidamente machista. Mais tarde, também seria pioneira ao tornar pública a sua homossexualidade durante a ditadura militar. Nesse mesmo ano, o recém-criado Dzi Croquetes, um dos grupos de teatro mais transgressores do país, levava toda a sua andrógina exuberância aos palcos com o espetáculo “Gente Computada Igual a Você”, o qual foi rapidamente censurado.
A data marca outro acontecimento especial na trajetória de luta, resistência e invenção das pessoas LGBTQIA+ no Brasil: o nascimento de Soraya Menezes, em Belo Horizonte. Iniciada nos movimentos de juventude de esquerda, vinculados à igreja Católica em uma época de forte repressão, ela participou da fundação do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), em Minas Gerais; foi a primeira mulher a liderar o Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos de Serviços de Saúde de Belo Horizonte (Sindeess), fundou a Associação Lésbica de Minas Gerais (Alem) e trouxe para a capital mineira a Parada do Orgulho LGBT, em 1998.
Ao que parece, a multiplicidade é uma das marcas da existência de Soraya: mulher negra, nascida e criada na periferia, trabalhadora e mãe, que já foi empregada doméstica, babá de criança e cachorro, professora, técnica de enfermagem, e hoje dá aulas de flauta e violão, além de ser requisitada para palestras nas quais fala de sua trajetória e temas como diversidade de gênero e sexualidade.
Na contramão da invisibilidade que marca a primeira letra de uma ampla e complexa sigla (LGBTQIA+), são muitos os trabalhos que registram seus quase 50 anos. Em uma rápida pesquisa no Google, é possível encontrar seu nome protagonizando desde trabalhos acadêmicos a aparições na imprensa. Durante a pandemia, são as lives que marcam um cotidiano difícil, de incertezas e “saudade dos alunos”, como ela descreve.
“Uma mulher não se torna feminista simplesmente por ser lésbica, da mesma forma que não se torna política por isso”, lembra bell hooks em seu livro “O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras”, de 2019. Mas, quando decide fazê-lo, o que assistimos é uma mistura de insistência, amor e muita coragem. É o caso de Soraya, e também das muitas mulheres que vieram e ainda virão, inspiradas por sua caminhada. Como a atriz e educadora, Priscila Tomas, que, aos 31 anos, conjuga militâncias que vão do centro às periferias da cidade.
Educadora do Sistema de Atendimento Socioeducativo do estado de Minas Gerais e idealizadora da Tomas Educação, espaço que surgiu na pandemia para trabalhar diferentes linguagens artísticas com crianças do bairro Alto Vera Cruz e proximidades, Pri, como é carinhosamente chamada, é nome reconhecido entre juventudes, sejam as da sua família e comunidade, ou aquelas que estão em restrição de liberdade, em sua maioria negras e que têm seus direitos continuamente negados.
O encontro entre essas diferentes gerações vem acontecendo, nos últimos anos, na Casa Brejo das Sapas, idealizada por Pri e suas companheiras, e que se define como um espaço de luta, resistência e autocuidado em BH, gerida pela Coletiva de mesmo nome. Além de mulheres lésbicas, também acolhe a comunidade LGBTQIA+ e negra de forma geral.
A autodefinição a partir das mulheres negras e lésbicas
É aos risos que Pri relembra quando os pais “descobriram” a sua sexualidade. “Estava rolando uma ‘resenha’ lá em casa, e uma amiga perguntou para a minha mãe se ela conhecia a nora. De um jeito natural, ela respondeu que não, e chamou o meu pai. Os dois disseram que, enfim, eu tinha admitido o que eles sempre souberam, e a festa continuou”, conta. O acolhimento da família foi e ainda é uma das âncoras não só para a educadora.
As memórias de suas vivências pessoais se misturam com a de vizinhas/os e amigas/os, que encontraram na casa em que ela cresceu o acolhimento que, muitas vezes, foi negado na delas/deles próprias/os. Para muitas pessoas que transgridem as expectativas de gênero e sexualidade cultivadas a partir de suas genitálias, desde o nascimento, esse não costuma ser um lugar tão confortável. Aos 18 anos, Soraya precisou sair de casa para ser o que acreditava desde a adolescência. Na militância, ela encontrou uma comunidade de apoio e sobrevivência, mas que também não passou ilesa aos conflitos.
“No movimento sindical, sempre tinham aqueles machistas que queriam te conquistar, não por você, mas para dizer ‘eu curei ela, ela mudou por minha causa’. Eu tive que ser muito firme em relação a quem eu sou, para que eu estava ali, enquanto uma mulher negra, lésbica e de periferia. A gente tem que se impor, mostrar qual é o nosso lugar”, conta Soraya.
Lembrar ao mundo e a si mesma quem é e o que quer ser também é uma luta cotidiana de Pri, marcada pelos diálogos com dirigentes e familiares dos espaços educativos onde já atuou com a comunidade do entorno da Tomas Educação, em sua atuação com adolescentes e jovens do sistema socioeducativo, nas fotos com a bandeira do arco-íris em seu perfil do Instagram. Tudo, de alguma forma, acaba sendo político.
Dos acontecimentos que mais marcaram sua história, ela traz o dia em que uma amiga, grávida do bebê que seria apadrinhado por ela e um amigo gay de ambas, pediu que não subissem ao altar da igreja para não desagradar aos outros padrinhos. “Nem pisei lá e também não dei mais nada. Não abro mão da minha existência, eu ia com o meu corpo, minha companheira, sendo quem eu sou”, conta.
“Se qualquer mulher sentir que precisa de qualquer coisa além de si para legitimar e validar sua existência, ela já está abrindo mão do seu poder de se autodefinir, de seu protagonismo”, escreve bell hooks em “O feminismo é para todo mundo” (2019). Mais adiante, completa: “lésbicas me inspiraram desde a infância a reivindicar o meu lugar de autodefinição”. Mulheres como Soraya e Pri seguem sendo esses faróis que inspiram mulheres, de diferentes gerações, a serem o que desejam e acreditam, mesmo, e apesar do preconceito e da violência. Lembrar suas existências, conjugando passados que se fazem vivos no hoje, e presentes, que são capazes de transformar o que já foi, isso é parte dessa caminhada coletiva e feminista da qual todas nós fazemos parte