O livro “A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos” não é a primeira obra de Tiaraju Pablo D’Andrea, 42, que é professor, mestre em sociologia urbana e doutor em sociologia da cultura. Conhecido como um dos pesquisadores que abordam a realidade periférica, ele adentrou o mundo acadêmico levando um pouco da própria trajetória.
“Sou fruto do território onde cresci e do tempo histórico que vivo”, conta o escritor. Após 30 anos morando na Vila União, bairro da Ponte Rasa, zona leste de São Paulo, hoje ele reside na Vila Esperança, no distrito da Penha, ainda na região leste.
O lançamento da nova obra – a 3ª da carreira – é resultado da tese de doutorado de Tiaraju pela USP (Universidade de São Paulo), que ganhou espaço e virou discussão antes mesmo de se tornar um livro.
“Falo sobre como os coletivos culturais são um meio de entender a cidade a partir das periferias urbanas, uma forma de resistência para esses sujeitos periféricos. O debate sobre fomento cultural estava crescendo e, lá em 2013, quando defendi a tese, comecei a ser chamado para formações para falar sobre o assunto”, explica.
De lá para cá, a tese foi ganhando espaço, críticas e apontamentos. O que tornou possível a publicação do livro. “A tese foi girando em várias quebradas diferentes. O trabalho que foi feito na universidade ganhou o mundo”, conta o autor.
E exatamente por conseguir atingir pessoas fora do espaço acadêmico, o trabalho foi sendo refinado. “Publicá-lo depois me fez incorporar as críticas, modificar algumas coisas e adicionar novas informações. Afinal, o Brasil de 2013 não é o Brasil de 2022”, acrescenta ele.
Quem são os sujeitos periféricos?
A tese parte do conceito de que a periferia tem resistido ao neoliberalismo a partir da organização política por meio da arte e da cultura. “Dos anos 1990 até aqui, a gente começa e termina em um genocídio. Na época, veio a primeira onda do neoliberalismo no Brasil, e agora tivemos a pandemia [de Covid-19]”, explica Tiarajú.
Segundo o professor e escritor, o neoliberalismo incorporava uma ideologia econômica, política e ideológica que deu início ao desmonte dos serviços públicos, ao alto índice de desemprego e à precarização.
“Tudo isso trouxe a desregularização da sociedade salarial e perda de direitos trabalhistas, principalmente para a juventude negra moradora das periferias, que passou a ser alvo. Esse desarranjo gerou ações repressoras, a política de matança para conter o mercado da droga e das armas, que crescia como alternativa nesse período”.
Tiarajú refere-se como genocídio porque, segundo ele, a reação de matança pode ser interpretada como masascre, uma vez que foi na década de 1990 que ocorreu mais mortes por homicídios na cidade de São Paulo. O efeito desse cenário é que começam a surgir movimentos e atividades de arte e cultura nas periferias que tentam dar uma resposta a isso.
“Isso sempre existiu, mas a partir desse contexto de violência, as pessoas começam a se aglutinar em movimentos e coletivos culturais para barrar o processo de matança, tentando pacificar o território”, explica.
A proliferação de linguagens culturais, como o samba, os saraus, os cineclubes, a literatura marginal e os fluxos de funks, trazem a resistência abordada no livro. Para o professor, não é por acaso que esse setor se torna veiculador de um discurso de denúncia e pacificação dos territórios.
“Pego emprestado o conceito do Tita Reis, que compôs a música ‘Sujeito Periférico’, para transformar em conceito sociológico. Então, quem resiste e faz política a partir da cultura é chamado assim”, explica.
“A conceituação do livro inclui pessoas comprometidas com as quebradas, não apenas pelas artes, mas que lutam por saúde, por educação, uma pessoa que ajuda a cuidar da vizinha e por aí vai”, complementa.
A influência dos Racionais MC’s
Dentre as manifestações culturais que expressam a necessidade das periferias se unirem, Tiaraju aborda a influência do rap: “a construção analítica homenageia o grupo Racionais MC’s, que ajudou muita gente a entender e modificar o seu cenário e realidade”.
No recorte dos anos de 1990 até o momento de publicação do livro, em 2022, o autor explora as fases dessa resistência da população periférica. Segundo ele, as músicas do grupo acompanham as mudanças e narrativas das periferias.
Em uma primeira fase, ele menciona o álbum Raio X Brasil, de 1993, e o Sobrevivendo no Inferno, de 1997. Músicas como ”Fim de Semana no Parque” e “Um Homem na Estrada” apresentam uma outra cidade de São Paulo, mostrando a realidade periférica.
“Essas músicas marcam um bloco histórico mais pesado, em que era preciso denunciar o genocídio em curso. Não há respostas ou saídas, se fala da realidade, do que estava acontecendo, do racismo. Até mesmo em letras como ‘Fórmula Mágica da Paz’ e 'Mágico de Oz' são notáveis a desesperança”, explica Tiarajú.
Já o álbum Nada como um Dia Após o Outro, de 2002, marca a fase do início dos anos 2000 até 2013, em que os Racionais MC’s mostram outra perspectiva de melhoria.
“O disco surge no início da era Lula (PT), trazendo um cenário de melhorias, em que há um nível de emprego maior, além de abordar a questão do consumo, a crítica da elite intelectual que acusa a periferia de consumista, como se comprar móveis e reformar a casa não fosse um direito social”.
Esse período aborda a ascensão social e inicia o diálogo sobre a possibilidade de ter recursos financeiros. “Em ‘Negro Drama’, o grupo desforra contra a elite que sempre viu com maus olhos o negro com dinheiro, se organizando politicamente e ocupando cargos na sociedade”, comenta Tiaraju.
“Em ‘Jesus Chorou’ se fala sobre conquistar uma nova posição social e, em ‘Vida Loka parte 2’, há a dualidade entre miséria absoluta e a possibilidade de acessar os recursos materiais que a sociedade oferece”, completa. A terceira fase analisada se refere a 2014 até o momento atual com o álbum Cores e Valores.
“Com outra pegada estética, as músicas representam um momento diferente. Foi lançado em 2014, então pega o período pós-manifestações de junho de 2013 e o aumento [de movimentos] da direita na rua. Representa o avanço do reacionarismo com o golpe de 2016 e o momento histórico atual com a eleição de Bolsonaro (PL)”.
O futuro dos sujeitos periféricos
Apesar do livro “A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos” focar nos últimos 32 anos, Tiaraju Pablo D’Andrea também comenta como é possível continuar a resistência periférica diante dos cenários sociais.
“Temos muitos movimentos populares e coletivos se articulando, mas não estão conseguindo ter força o suficiente. Não têm força para se aglutinar, se reunir. Está faltando projeto de futuro, é muito tempo só resistindo, pensando no imediato”. O escritor termina o livro com uma perspectiva que reúne a tríade: vicência, teoria e projeto.
“A construção da nossa subjetividade e experiência histórica é fundamental. Mas é preciso alinhar com uma teoria que faça sentido para nós que somos das periferias. Juntar vivência com a teoria e formular um projeto, o que a gente quer para o futuro”, finaliza.
O livro, que está em pré-venda e custa R$ 50, pode ser adquirido pelo site da Editora Dandara. Além disso, há um calendário com eventos de lançamento, incluindo encontros e bate-papos:
- No dia 15/09, às 19h, será a vez da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) promover um encontro para apresentar o livro com a presença da historiadora Laura Sabino.
- Dia 29/09, o evento de lançamento será no Boteco da Dona Tati, na Barra Funda (zona oeste de São Paulo), com a presença da pesquisadora Carolina Freitas.
- 22/10, no Sesc Itaquera (zona leste), às 14h, com as presenças da cantora Luz Borges e do músico Tita Reis.
- 5/11, no Sesc Consolação (centro), às 14h, com as presenças da cantora Luz Borges, do músico Tita Reis, da geógrafa Silvia Lopes e do filósofo Paulo Arantes.