MC Nego Bala triunfa o sonho de revolucionar o funk

Atração do Sesc 24 de Maio e do Rock the Mountain, MC lança álbum de estreia “Da Boca do Lixo” e conta sua história através da música

12 jan 2022 - 09h04
MC Nego Bala
MC Nego Bala
Foto: Daniel Arroyo/Ponte

“Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora?”. A frase estampada em um livro de capa verde prendeu os olhos de MC Nego Bala quando ele morava na casa de um produtor musical.

“Li umas páginas, me liguei na visão do cara. Ele usa poucos pontos, ele escreve direto. É difícil a dialética dele, mas eu gostei. Levei para o Gustavo [outro amigo e produtor], e falei: ‘mano, olha o livro que achei, irmão. Você vai achar foda. Pedagogia do Oprimido’. Ele olhou para mim e falou: ‘puts mano, o Paulo te achou”, o MC ri relembrando a cena.

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Foi naquele momento, com o livro do educador Paulo Freire em mãos, que Nego Bala passou a entender de vez a sua relação com o mundo. Nascido e criado na região da Luz, no centro de São Paulo, conhecida pejorativamente como Cracolândia, Marcelo Abdinego Justino Generoso lidou não só com a opressão por meio da violência policial como também sentiu a invisibilidade de quem vive no coração da maior cidade do país.

Jovem negro, filho de uma mãe que enfrentou problemas com as drogas e de um pai que trabalhava como vendedor, Nego teve que superar diversas barreiras para lançar seu álbum de estreia Da Boca do Lixo aos 23 anos, além de se tornar produtor e roteirista. “Nessa minha passagem aqui, na Boca do Lixo, eu vi muita barbaridade, até mesmo de quem parecia que ia ajudar”, ele conta.

A região, que entre o fim da década de 1960 e o fim da década de 1980 era palco de produções cinematográficas e do encontro de artistas e estudantes, sofreu com os efeitos da ditadura militar, viu o policiamento aumentar e, hoje, é marcada pelo abandono e a concentração dos chamados “fluxos”, onde há o consumo e a venda de drogas.  

MC Nego Bala
Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Na época em que se envolveu nos fluxos e esteve privado de sua liberdade, Nego estreitou sua relação com a música e começou a fazer rimas com a realidade que vivia. Em uma de suas passagens pela Fundação Casa, aos 12 anos, ele compôs “Sonho” quando estava de castigo e precisou repetir a letra até gravar no pensamento o que viria ser a principal canção de seu álbum, que virou parceria  com Elza Soares e ganhou um clipe com a joint venture AKQA\Coala.LAB e produzido pela Stink Films. “Por tudo o que eu passei, eu agradeço. Até isso. ‘Sonho’ é um presente de fato na minha vida”, diz emocionado.

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“Várias pessoas chegavam em mim falando ‘mano, você tem que cantar’, ‘sua música é boa’. E, às vezes, você está ali envolvido em uma caminhada que já te tacharam, porque antes dessas pessoas, já vem o Estado que te tacha, te põe um rótulo de que você é aquilo”.

As palavras de Paulo Freire ajudaram o músico a perceber que o melhor caminho não era tentar ser o opressor, mas sim se libertar das amarras do sistema. “As pessoas que estão envolvidas nessa trama social já estão cegas por um diploma de jurar, prometer, ajudar e defender. Mas, quando elas se deparam com o necessitado de ajuda, elas oprimem, batem, prendem”, pontua.

Sempre presente nos protestos de coletivos como A Craco Resiste, movimento que denuncia os abusos da polícia e acolhe as pessoas em situação de vulnerabilidade na região, ele questiona: “O que o Estado está fazendo com as pessoas que necessitam de uma ajuda de saúde pública? Eles colocam uma força pública. Porque aqui na minha quebrada tem mais polícia do que médico, psicólogo, assistentes sociais. Tem mais polícia do que tudo. E para que isso? Nós estamos numa guerra e não me avisaram?”.

Nego acredita que a política pertence à quebrada e a realidade opressora só será transformada a partir do momento que as periferias ocuparem cada vez mais esse espaço. “Fizeram acreditar que o mal estava em mim por muito tempo nessa vida, mas o mal não está em nós”, reforça.

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MC Nego Bala
Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Rimas de resistência

Com o passar do tempo, a música se mostrou o refúgio dos momentos mais difíceis e curou sua alma quando lidou com a perda da mãe. Foram os pais, aliás, que introduziram o rap e o samba na vida de MC Nego Bala. Depois, a influência das ruas o mostrou a possibilidade de expressar sua história por meio da arte.

No entanto, o músico não imaginava aonde chegaria quase 12 anos depois. Apesar de todo incentivo, ele reitera que precisou provar para si mesmo o seu talento e acreditar que conseguiria alcançar o que queria. “As pessoas sempre procuram alguém que está por trás de você, mas antes de você encontrar um empresário, você já ensaiava no espelho. Então, você já era o seu empresário”.

Olhando para a própria trajetória, Nego também reconhece o quanto o amor que sente pela sua quebrada e que recebeu dos pais e dos parceiros da vida foi combustível para se permitir sonhar. Os sentimentos se traduziam em letras e rimas que cantarolava sozinho ou nas batidas que criava com os colegas na Fundação Casa.

Anos depois, teve a oportunidade de apresentar o seu álbum para os garotos internados e contar com a participação do professor Café, que lhe ensinou percussão, apresentou raps e abriu sua mente durante uma de suas passagens. Ao mesmo tempo, as letras de Racionais MCs e de outros rappers ecoaram nos pensamentos de Nego Bala naquela época.

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Segundo ele, o álbum veio para chamar atenção e questionar a realidade não só da Cracolândia mas também de todas as quebradas do país. “Ter feito uma música com a Elza Soares virou uma chave na minha cabeça de real superação. Eu fiz para ser eterno, como ela também é”.

MC Nego Bala
Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Da Boca do Lixo para o mundo

A partir das referências que teve na música, Nego Bala entrou no estúdio para traçar a revolução no funk misturando beats de trap, boom bap e instrumentos de sopro e percussão. O gênero se desenvolveu no país à medida que Marcelo se tornava MC. Em um dos estúdios em que produziu o seu álbum, dentro de uma ocupação no centro de São Paulo, ele conta como cada música carrega um marco da sua própria vida e por que tomou para si o desafio de fazer um som diferente e ousado.

“Não sei qual é a fita, mas o funk sempre fica num lugar musical infantil. Nada contra o lugar infantil, mas nós levamos o Brasil para um lugar de amadurecimento muito grande. Nós vamos chegar. O funk não é só uma música, é estado de espírito. Ele liberta e salva”, orgulha-se em falar do processo criativo das nove faixas do álbum.

Além de “Sonho”, Nego também compôs quando esteve privado de liberdade "Cifrão In' Pé", que fala dos seus valores, "Da Boca do Lixo", que exalta a potência de quem vive nas quebradas, "Paradoxo" e “Buraco no céu”, ambas que surgiram no improviso. Em “Anjo”, letra escrita à mão, o MC fala de afeto e romance. “Uma forma carinhosa de se remeter à mulher que é mãe, irmã, filha, a todas as nossas criadoras no mundo e arquitetas”, explica.

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Já em “Som de preto” misturam-se o orgulho de suas raízes, da negritude e a identidade do Brasil. "Fumando do verde" e "Diumjeitodiferent" completam o álbum falando do baile e da sua guinada na vida para ser MC.

Com toda essa produção, MC Nego Bala inicia 2022 com focado em divulgar o álbum e em sonhar cada vez mais alto. Já no dia 12 de fevereiro, ele faz a primeira apresentação de Da Boca do Lixo com a sua banda no Sesc 24 de Maio, no centro da capital paulista e, em abril, é atração confirmada nos dois fins de semana do festival Rock the Montain, onde se apresenta no palco da MangoLab. 

MC Nego Bala
Foto: Daniel Arroyo/Ponte
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