Pela 1ª vez, mulher preta e favelada será a ouvidora do RJ

Duas representantes da periferia disputam cargo na Defensoria Pública. Perfil da vencedora é inédito

6 nov 2023 - 05h00
Candidata Marcia Jacintho. atual Ouvidor-geral, Guilherme Pimentel; e a candidata Fabiana Silva
Candidata Marcia Jacintho. atual Ouvidor-geral, Guilherme Pimentel; e a candidata Fabiana Silva
Foto: Defensoria Pública do Rio de Janeiro

“Ela é uma mulher de luta, do movimento de mães. E outra coisa: ela é uma mulher preta. Você nunca vai me ver, em lugar nenhum, minimizando a luta de uma mulher preta, ainda mais uma mãe. Nenhuma disputa vai me colocar nesse lugar. Eu quero ganhar, claro, mas em um jogo justo, limpo e ético. Se ela está concorrendo é porque ela tem, sim, capacidade para isto.”

A declaração de Fabiana Silva, de 42 anos, sobre a mulher com quem disputa a vaga de ouvidora da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, é exemplar ao reconhecer a luta de mulheres pretas e periféricas para ocuparem postos de decisão. Sua concorrente é Marcia Jacintho, 62 anos, líder comunitária, militante da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência.

Publicidade

No próximo dia 17 de novembro, eleita Fabiana ou Marta, será a primeira vez que uma mulher, uma mulher preta – especificamente: uma mulher preta e favelada – estará à frente da Ouvidoria-Geral Externa da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. O cargo tem mandato de dois anos.

A Defensoria Pública oferece assistência jurídica gratuita para quem não consegue pagar. Na estrutura fluminense existe, desde 2015, a Ouvidoria, comandada por pessoa eleita pela sociedade. O órgão atua na melhoria dos serviços prestados.

Mãe teve filho executado pela polícia em 2002

Márcia Jacinto mora na comunidade Nossa Senhora da Guia, mais conhecida como Gamba, zona norte do Rio de Janeiro. Seu conhecimento dos mecanismos da justiça começou quando seu filho de 16 anos foi assassinado por policiais, em 2002. Praticamente sozinha, lutou por seis anos até conseguir a condenação de dois policiais.

Publicidade

O filho de Márcia, inocente, estudante, sem envolvimento com o crime, foi acusado de resistir à abordagem policial. A mãe provou a farsa. “Limpei o nome do meu filho, de traficante para cidadão”. Na época, não havia Ouvidoria, mas a Defensoria a ajudou.

Marcia Jacintho, mulher guerreira que teve o filho assassinato por policiais. Depois do crime, não parou mais de brigar por direitos
Foto: Arquivo pessoal

“O doutor Leonardo Rosa ligava para a delegacia, para saber como estava o inquérito, me recebia, ouvia minha denúncia, não podia fazer muita coisa, mas foi importante”. Após conseguir a condenação dos policiais que assassinaram seu filho, as lutas de Márcia Jacintho continuaram, como líder comunitária e rodando o Brasil nos encontros nacionais de mães e familiares de vítimas do Estado.

As novidades da burocracia e outros trâmites eleitorais da candidatura à Ouvidoria estão dando trabalho. “Ninguém sabia me informar nem onde tirar as certidões, um amigo conseguiu pra mim, pela internet.” Mas ela não duvida da importância da eleição.

“Estou me sentindo muito representada, acredito que a outra candidata também. Para sempre será uma história de duas mulheres negras, uma ou outra escolhida pela sociedade civil para representar o povo carioca. Olha, palavras vão me faltar, nunca houve tanta ousadia de se colocar nessa posição: sou mulher negra, pobre e moradora de favela, mãe de vítima letal do Estado, mas fui capaz de chegar nesse espaço. Esse é meu orgulho.”

Publicidade

Candidata teve irmão assassinado por policiais

Fabiana Silva mora em Irajá, zona norte do Rio de Janeiro. Assim como sua concorrente à Ouvidoria, conheceu a Defensoria Pública do Rio de Janeiro por dois motivos trágicos, a morte do irmão de 16 anos, assassinado pela polícia, e encarceramento de outro. Ali começou sua luta e o conhecimento dos meandros do sistema judicial.

Realizou trabalho de educação com mulheres faveladas, prestou vestibular e cursou Pedagogia. Durante o curso, idealizou o projeto Apadrinhe um Sorriso, que hoje atende cerca de 300 crianças e jovens e 64 mulheres da favela Parque das Missões, em Duque de Caxias.

Fabiana Silva conheceu a Defensoria quando irmão foi assassinado. Depois, atuou na Ouvidoria como assistente
Foto: Arquivo pessoal

Fabiana Silva, que trabalha na ONG Casa Fluminense, atuou como assistente de dois ouvidores na Defensoria Pública do Rio de Janeiro, entre 2018 e 2021. Além da rotina de ouvidora, a candidata promete trabalhar para facilitar o acesso de pessoas da periferia ao importante espaço de poder e atuação por justiça que é a Ouvidoria.

Se conseguir, dificuldades como as enfrentadas pela outra candidata, Márcia Jacintho, devem diminuir. Fabiana Silva sabe que sequer a informação mais básica sobre a possibilidade de ser ouvidora ou ouvidor chega às periferias. Ela gostaria de mudar isso, pois o cargo deve ser ocupado por pessoas com legitimidade.

Publicidade

“Até hoje, nenhuma mulher negra do Rio de Janeiro ocupou a Ouvidoria. Tivemos e temos mulheres negras eleitas nas ouvidorias de outros estados. Mas o Rio precisa possibilitar que tenhamos a gestão de uma mulher, e não qualquer mulher. Que fique claro: uma mulher negra, favelada e educadora.”

Fique por dentro das principais notícias
Ativar notificações