O educador popular José Nicácio, 54, fez do teatro um aliado na transformação de realidades de crianças e jovens moradores da Ilha do Bororé, península localizada no Grajaú, no extremo sul de São Paulo.
Há mais de 30 anos lecionando, o professor desenvolveu as primeiras oficinas de teatro da região, participou da mobilização para reabertura de um espaço cultural e, agora, sonha realizar uma nova missão: o projeto de museu que conte e preserve a história local.
“Esse território é um museu a céu aberto e queremos mostrar que é possível viver aqui e que pode ser uma vida sustentável. É preciso lutar pela valorização da vegetação, dos animais e de toda a luta dos que vivem aqui”, diz o educador.
A inspiração para a iniciativa está nas ruas da ilha, localizada em uma APA (Área de Proteção Ambiental), onde é possível observar nos muros, pinturas que contam a história dos primeiros moradores, curiosidades da Represa Billings e dos povos originários que habitavam a região antigamente.
A ideia do professor é reunir fotografias raras e maquetes que retratem a evolução do território ao longo dos anos. “O povo brasileiro precisa ter mais memória histórica e é isso que eu quero resgatar. Para que a própria população preserve e valorize o que temos”, conta.
O projeto deve contar com o engajamento da população, sobretudo dos alunos do educador, que ostenta uma carreira inspiradora na região por meio da arte.
O teatro que transforma
Aos 22 anos, Nicácio começou a lecionar história para as turmas do ensino fundamental e médio, na Escola Estadual Professor Adrião Bernardes.
Nessa época, percebeu que muitos alunos enfrentavam desafios relacionados ao álcool e às drogas, e como isso afetava o processo de aprendizado e reduzia a motivação escolar.
Com o intuito de motivá-los, o educador criou um coral com os alunos da 5ª a 8ª série e um grupo de teatro voltado para as demais séries. "Os alunos eram encorajados a montar suas próprias peças, explorando temas vinculados às suas próprias vivências", relembra Nicácio.
A primeira peça montada sob sua orientação foi intitulada "Um Sonho Nordestino", que falava sobre a semana da água, abordando a escassez de água no nordeste, a seca enfrentada pela região e o desperdício do recurso hídrico na cidade de São Paulo.
A cada ano, uma nova produção era realizada. Os espetáculos abordaram temáticas como sexualidade na adolescência, consumo de drogas e suicídio.
"Apesar de algumas peças tratarem de temas mais ‘pesados’, estimulamos os alunos a expressarem suas próprias inquietações. Ali, eles encontravam um espaço para serem acolhidos, independentemente das circunstâncias", relembra Nicácio.
Nicácio deixou a região em 1994, mas retornou em 2006. Na primeira aula de teatro, teve apenas uma aluna. No fim daquele mês, sua turma já contava com 30 participantes.
O estudante de design gráfico Helton Amarantes, 36, foi um dos estudantes que tiveram a vida transformada pelo teatro. Nascido com lábios leporinos, o jovem enfrentou dificuldades durante a infância e adolescência com a questão da fala.
Participar das peças o ajudaram no desenvolvimento intelectual e emocional. Atualmente, ele atua como voluntário na oficina. “A arte proporciona a reintegração no sistema escolar, para que possamos ter a inclusão na sociedade”, avalia Amarantes.
Já o ator Émerson Ribeiro, 37, ingressou no universo teatral há 20 anos e adotou o nome artístico de Émerson Bororé, em homenagem à sua ligação com o território. Para ele, uma das partes mais emocionantes da profissão são as oportunidades de apresentação em diversos locais.
“O teatro foi algo mágico para mim e quero que os mais novos tenham a mesma experiência e privilégio que tive. A rua, a casa de cultura e outros ambientes também são de aprendizagem. O jovem tem que se sentir acolhido e saber que esse espaço é dele também”, relata.
Ao lado de sua equipe, Ribeiro realizou uma turnê pelos Centros Educacionais Unificados (CEUs) de São Paulo, apresentou peças para estudantes de artes cênicas da Universidade de São Paulo (USP) e na antiga Febem Tatuapé, que na época era o maior complexo da instituição na capital.
A retomada da Casa Ecoativa
Foi ouvindo os alunos que Nicácio também deu suporte para a reabertura da Casa Ecoativa - espaço público de lazer, convívio, cultura e consciência ambiental -, que ficou fechada entre os anos de 2006 e 2013.
Jaison Lara, 31, foi uma das crianças que frequentavam o espaço e, após o fechamento, buscou o apoio do professor com outros jovens para reocupar o território.
“Me aproximei da casa pelas aulas de capoeira, o acesso à literatura e biblioteca, além das atividades com o meio ambiente. Muito do viés do meu trabalho atual está ligado à minha base educacional e pelos meus avôs serem agricultores”, relata Jailson, atual coordenador de projetos da Casa Ecoativa.
Ele conta que no momento da ocupação, os jovens convocaram José Nicácio, que se uniu prontamente ao movimento. Com apoio do educador, a população resgatou o trabalho envolvendo a terra.
Contudo, foram anos de lutas intensas para mostrar a relevância do projeto. Somente neste ano, a Emae (Empresa Metropolitana de Águas e Energia) cedeu o terreno para a Secretaria do Verde, que concedeu o uso do espaço por 20 anos. Como resultado, a Ecoativa terá uma gestão compartilhada com o Poder Público.
No local, as oficinas de teatro voltaram com aulas gratuitas abertas a todos os públicos, aos sábados, das 9h às 12h. A iniciativa faz parte de um programa vocacional da Secretaria Municipal de Cultura e também conta com a orientação da artista Giovana Paixão.
“O retorno do projeto do teatro é muito simbólico. Justamente, em um momento que o Zé precisa, porque ele está passando por um período de muita dor na coluna. Uma situação que demandou até o afastamento da escola da sua função como professor. É muito bom a gente poder apoiar ele agora quando precisa”, diz Jailson emocionado.