Para o barbeiro Micael Costa, 24, deixar o cabelo “na régua” é muito mais do que uma questão estética; é sobre autoestima e amor próprio. Cria da zona leste de São Paulo, ele já morou nas favelas do Parque do Carmo e atualmente tem uma barbearia no Jardim Iva, no distrito de Sapopemba, também na região leste da cidade.
Homem trans preto, Micael garante: a barbearia dele é para todas as pessoas. “Atendo mais pessoas que são daqui da quebrada, então o preço é mais acessível. Mas atendo todo e qualquer público”, diz.
“Tento dar uma brechinha para o público LGBT+ [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e mais] se sentir mais à vontade. Homens trans e travestis, no geral. Porque muitos foram cortar comigo e comentaram que já sofreram preconceito [em outros lugares].”
Se tornar barbeiro não era algo que estava nos planos, mas, durante a pandemia de Covid-19, ele viu o trabalho como freelancer em recreação infantil ficar quase escasso, já que os passeios escolares não aconteciam mais. Aprendeu os primeiros cortes com o irmão, que também é barbeiro, e juntos abriram a barbearia.
E Micael faz de tudo. “Corte para todos os cabelos, pigmentação, barba, sobrancelha e luzes. O corte que mais sai é o famoso degradê na zero, com aquele risquinho na lateral ‘de lei’, deixando o cabelo do topo em tamanho de médio para pequeno”, explica.
Para ele, o local de trabalho deve ser muito além do que sentar e cortar o cabelo. “Cliente senta e a gente conversa sobre qualquer coisa. Não tem só questão de ‘vou cortar seu cabelo e ganhar meu dinheiro’. Tem a questão de criar uma amizade, servir como um ombro amigo, ouvir uma situação ruim ou uma situação boa.”
E isso vem de uma experiência pessoal. “Depois da transição [de gênero], cortar o cabelo meio que virou uma terapia para mim. Normalmente sou aquela pessoa que chega e já começa a desabafar sobre como foi o dia e tudo o que está rolando. E é muito doido, né? Meter um risquinho assim melhora a autoestima”, conta.
Construção de uma masculinidade não tóxica
Micael não teve bons exemplos masculinos ao redor, já que foi criado pela mãe e pelas tias. Além disso, quando percebeu que era um homem trans, precisou lidar com os traumas do passado.
“Com cinco anos, fui abusado pelo meu irmão que, depois do meu pai, seria a minha figura masculina. Quando me entendi [como homem trans], isso gerou um problema muito forte porque, na minha cabeça, eu ia me tornar algo que um dia me feriu”, relata.
Apesar de ser um processo complicado, ele conseguiu encarar bem o processo de transição. “A gente não nasce homem, a gente não nasce mulher, a gente se torna. Fiquei pensando: como vou me tornar um homem? Além de roupa, de fala grossa, de barba, como vou fazer para construí-lo?"
“O homem que quero ser… não diria que é um homem ideal porque é quase impossível, mas quero ser um homem fora do ambiente machista”, define.
Hoje, Micael é pai e tenta ser o exemplo que não teve para o filho. “Biologicamente, ele é meu sobrinho, mas eu e minha esposa o criamos. Ele tem 5 anos e me chamava de pai mesmo antes da transição. Indiretamente ou diretamente, ele me ajudou a construir essa masculinidade, porque quero ser para ele algo que não tive”.