A ideia de que problemas psicológicos podem atingir qualquer pessoa, independente de cor, classe social ou orientação sexual, vem sendo descontruída. As carências sociais também se refletem na falta de acesso à saúde mental, como nas comunidades pobres de Recife.
É o caso de Maria Helena (nome fictício), de 40 anos, mulher negra, mãe solo, autônoma e moradora de uma periferia da zona norte da capital pernambucana. Em 2021, após uma crise nervosa, ela foi diagnosticada com ansiedade e depressão. Desde então, faz acompanhamento semanal com psicóloga que oferece o serviço a preço acessível e usa medicamentos prescritos por psiquiatra do Sistema Único de Saúde (SUS).
Ela pensou que seu problema era causado pela rotina atarefada e que os sintomas ficaram piores após o falecimento de um familiar. “É tudo isso, mas foi durante a terapia que eu consegui perceber as raízes desse sofrimento e hoje eu reconheço que muito do meu adoecimento foi causado pelo racismo, pelo abandono e pela própria pobreza”, explica Maria Helena.
Estudante entendeu que problema psicológico não era uma fase
Alex Ulisses tem 24 anos, é um jovem estudante de designer gráfico e mora no Ibura, periferia da zona oeste do Recife. Desde os 17 anos, percebe desmotivações, desânimo, picos de estresse, frequentes oscilações de humor. Mesmo a contragosto, permitiu que uma amiga o ajudasse a buscar apoio psicológico.
O primeiro atendimento foi na Clínica Escola de uma universidade particular que promove o serviço cobrando taxa simbólica. O estudante compareceu a quatro sessões, mas não continuou. Ele acreditava ser apenas uma fase, estava em transição entre o curso técnico e o ensino superior.
No entanto, em 2020, durante a pandemia, os sintomas pioraram e ele precisou de ajuda psicológica e psiquiátrica de urgência. O tratamento foi realizado pelo SUS e durou pouco mais de dois anos.
“Fiz terapia com várias psicólogas, por conta das trocas de profissionais, que são frequentes. Mas, como paciente, se por acaso eu não gostasse daquele profissional, eu não podia trocar, até porque, no SUS, dependendo da unidade, só existe um psicólogo”, conta Alex Ulisses.
“Lidar com o problema sozinha não estava dando certo”
Segundo a estudante Leila Maria Almeida, 21 anos, no Centro de Atendimento Psicossocial, o CAPS da região do bairro San Martin, zona oeste do Recife, a fila de espera é muito alta. A estudante recorda que desde muito novas apresenta sintomas de ansiedade. O mais recorrente era a taquicardia e, em 2019, teve várias crises.
“Durante a pandemia, passei a apresentar outros sintomas, como irritabilidade, dificuldade de concentração e insônia, além de apresentar apatia, desinteresse e muita dificuldade de controlar meus sentimentos, tendo crises de choro frequentes e alguns episódios de automutilação. Foi depois de uma crise muito severa que eu entendi que realmente não estava dando certo minha estratégia de querer lidar com isso sozinha”, confessa Leila.
Para quem consegue, plano de saúde acaba sendo a solução
A jovem contou com o apoio da avó e da mãe para tratar de questões burocráticas até conseguir atendimento. “Inicialmente, eu tive que passar por uma consulta com o clínico geral do posto de saúde da minha região. Esse médico me receitou medicação para ajudar com a insônia e me passou o encaminhamento para um psiquiatra. Consegui agendar consulta, fiz uso de duas medicações por algum tempo, uma delas era disponibilizada no posto e a outra precisava ser comprada”, conta Leila.
Ela continua sendo acompanhada pelo serviço de psiquiatria público, mas realiza tratamento de psicoterapia através de um plano de saúde. Essa também foi a solução encontrada pelo estudante Alex Ulisses, cuja história foi narrada anteriormente.
Ele está deixando o acompanhamento mensal com psicóloga do SUS para começar tratamento através do plano de saúde, ao qual aderiu com a ajuda de amigos e familiares. Percebeu que o atendimento público não estava sendo suficiente, voltando a ter muitas crises de ansiedade, tendo que retornar o tratamento medicamentoso.
Além dos sintomas de ansiedade e depressão, o que levou Ulisses a procurar apoio psicológico foi o sofrimento causado por conflitos com seu pai, por ele não aceitar a orientação sexual do filho.
Abordagem clínica deve ser interseccional
Para a psicóloga Marina Angeiras, “as estruturas sociais de raça, classe, gênero e sexualidade vão moldando a experiência das pessoas, mas também aprisionando uma forma de ser. Chega muito no consultório essa sensação de que não é permitido ser além daquilo que a sociedade impõe e o adoecimento vem muito disso, do não poder ser quem se é, e isso envolve as vivências de pessoas negras, LGBTs e moradoras de periferias”.
A psicóloga acredita que, para o profissional ser capaz de desenvolver uma abordagem clínica interseccional – envolvendo diversos fatores – sua capacitação deve começar nos cursos de graduação. Para ela, a psicologia é uma ciência com base majoritariamente branca e eurocêntrica. “No Brasil, temos um contexto em que profissionais se formam com o mínimo ou nenhuma habilidade para fazer uma escuta da maioria formada por pessoas pobres, pretas e periféricas”, afirma Marina.
Além de psicóloga, ela é instrutora de ioga e terapeuta em formação. Atende cobrando preço social e é voluntária no Neimfa, associação sem fins lucrativos que atua há mais de 30 anos na comunidade do Coque, periferia da zona norte do Recife. Marina tem percebido a chegada de pessoas muito adoecidas porque não seus direitos humanos básicos não são assegurados.
Entre as iniciativas acessíveis à população periférica do Recife está o Mutuar – Comunidade Gestáltica, com 17 anos de atuação. A clínica promove o Programa de Acessibilidade à Psicoterapia (PAPSI). Em mais de uma década, ajudou milhares de pessoas e contribuiu para a formação de profissionais e estudantes, que realizam estágio.
Pesquisa mostra que mulher preta e pobre é mais vulnerável
Um estudo exclusivo e inédito divulgado este ano pela Lab Think Olga, intitulado Esgotadas, ouviu 1.078 mulheres em todas as regiões do Brasil: 47% das entrevistadas se autodeclararam pretas e pardas; 86% têm renda familiar compatível às classes C, D e E; e pouco mais da metade têm filhos. O estudo identificou que mulheres negras pobres com mais de 55 anos são as principais provedoras do lar, sofrendo com o maior nível de vulnerabilidade.
Sobre saúde mental, 55% se queixam de ansiedade, 49% de estresse e 39% de irritabilidade. O Lab Think Olga constatou que quase metade das entrevistadas foi diagnosticada com algum transtorno mental, enquanto apenas 15% conseguiram manter a psicoterapia.
O estudo Esgotadas evidencia que o atendimento multidisciplinar e integrado a partir dos princípios da interseccionalidade - raça, gênero e classe – deve considerar a pluralidade de contextos em que o indivíduo está inserido para identificar como as pessoas são impactadas pelo sofrimento mental de diferentes níveis e maneiras.