É muito fácil para uma pessoa que vem de uma realidade privilegiada, com poder de compra e autonomia, dizer que tudo é uma questão de escolhas. Isso, além de elitista, é uma forma de culpabilizar uma população que em sua grande maioria vive com bastante dificuldade econômica e social.
Com frequência vemos instituições e pessoas que propagam o movimento vegano dizendo: ''É só tirar a carne e substituir por vegetais, é só trocar um produto por outro''. Porém, essa forma de se manifestar, não considera a realidade e as dificuldades enfrentadas por milhares de pessoas em periferias e favelas.
No nosso caso, não foi difícil comprar vegetais, encontrar no mercadinho do bairro produtos não testados em animais e se engajar no movimento vegano. No entanto, cada conversa e reflexão na quebrada abria os nossos olhos para a complexidade do problema e mostrava que vai muito além de uma simples mudança de hábito.
Para quem sempre pôde comprar qualquer produto ou alimento é fácil dizer "só mudar seus hábitos", diferente para quem nunca pôde. Quem não consegue comer um pedaço de carne devido à condição financeira, quando tem acesso não quer deixar de lado. E é necessário haver essa compreensão.
Mais do que uma simples troca, é necessário considerar diversas questões socioeconômicas e estruturais. Como, por exemplo: os condicionamentos, a publicidade, a miséria, o acesso à comida de verdade, a educação, a desinformação, entre uma série de outras questões que atravessam nossas escolhas.
Uma vez numa roda de conversas, uma pessoa de classe média alta disse assim: "Olha, eu sou vegetariana, e a minha empregada tem essas informações, ela até prepara a minha comida, e ela não quer ser vegetariana, é uma escolha dela".
Esse comentário mostra o quão deslocada a pessoa está da realidade. Apesar da fala absurda, ela não deve ser condenada por isso, pois ela nasceu dentro de uma realidade da qual nunca precisou se preocupar com o congelador vazio. Provavelmente, ela não sabe o que é ter uma vida de escassez e ainda ter que trabalhar na casa dos outros numa posição desfavorável, tendo que pegar busão lotado, muitas vezes levando horas no trajeto. Isso impacta diretamente nas decisões individuais.
Dependendo da realidade da pessoa (nesse caso, a funcionária), a última coisa que ela vai pensar é em meio ambiente, em animais ou movimentos sociais. Isso é um fato. A maioria das pessoas só vai olhar para outras questões quando tiverem com a própria sobrevivência minimamente garantida, com informação o suficiente e consciência da realidade.
Entretanto, isso não quer dizer que quem vive em periferias ou favelas não pode se tornar vegano ou escolher o que consumir. Conforme a possibilidade de cada um, é possível fazer escolhas conscientes e não condicionadas. Afinal, existem diversas periferias e diversas condições dentro de cada uma delas. Somos um exemplo dessa realidade, crescemos na periferia, viramos veganos dentro desse contexto e sabemos de forma prática como é ser vegano na quebrada.
A maioria das pessoas que conversamos ao longo da caminhada acredita que os animais não deveriam passar por tudo que passam na indústria leiteira, em abatedouros, laboratórios e granjas. Além disso, uma pesquisa realizada entre os dias 8 e 11 de setembro de 2021, pelo Instituto Datafolha, mostrou que 88% dos brasileiros se preocupam com o sofrimento dos animais nas fazendas.
O veganismo popular e periférico surge a partir de perspectivas da base, visando mostrar que é possível uma forma de vida que não inclua exploração animal ou prejudique a própria saúde. Mas sempre com os pés na realidade, mostrando as possibilidades (algumas vezes limitadas) em periferias, favelas e interiores do país.
Este movimento está se tornando mais popular e se aproximando cada vez mais da maior parte da população. É possível vir de uma realidade periférica e se movimentar, participar ativamente e fortalecer diversas lutas.