Vegano Periférico: experiência como garçom numa casa sertaneja

Ser vegano em qualquer lugar é difícil, mas numa balada sertaneja, completamente machista, a experiência é pior ainda.

5 abr 2023 - 11h34
(atualizado às 15h33)
Foto: CanvaPro

Virei vegano em 2017, motivado, principalmente, pelo sentimento de justiça em relação aos animais. No entanto, não aboli o consumo de produtos de origem animal só por isso. Eu também queria mudar a minha alimentação, que, diga-se de passagem, era péssima, e não desejava mais contribuir com práticas responsáveis pela devastação ambiental como a pecuária e o agronegócio.

Quando tomei a decisão, eu trabalhava como garçom em uma cachaçaria sertaneja. Você já deve imaginar o cenário: as músicas com teor machista, masculinidade exaltada e uma visão completamente pejorativa em relação aos animais. Para se ter uma ideia, as lixeiras da balada eram baldes de leite reais.

Publicidade

Me sentia muito desconfortável nesse ambiente, não era o local em que eu queria estar, porém, a minha realidade não permitia escolher muito. 

Eu tinha acabado de ser demitido do McDonald's, morava com minha mãe desempregada, meu pai tinha acabado de falecer em situação de rua, eu estava desesperado para conseguir qualquer trabalho. 

Acredito que o maior desafio tenha sido a convivência, especialmente com o machismo. Como costumo dizer, o meio social é sempre o mais complicado. 

Porque a grana dava para comprar os rangos. Minha alimentação era baseada em grãos, cereais, frutas e legumes. Sem contar os preparos que sempre fiz em casa, como salgados, bolos, pães, tortas, entre diversos outros. O que encarece o rango são produtos industrializados caros e o açougue, não consumia nem um e nem outro. Então foi de boa.

Publicidade

No entanto, o meio social me gerou um desconforto enorme no início. Sempre que a rapaziada saía para comer algum barato, eu recusava, e acabava sendo alvo de chacota, o ‘’chatão’’. Por exemplo, ao lado da cachaçaria havia um grande restaurante chamado 'Espetinho' e meus parceiros costumavam ir lá.

Eu ia com eles, mas não comia nada. Alguns faziam comentários desnecessários, enquanto outros tentavam entender o motivo de rejeitar um espetinho de frango, de carne de boi, ou coração de galinha.

Um dia, o pessoal da cachaçaria decidiu fazer churrasco, e as brincadeiras começaram. Eles me chamavam, dizendo que a carne estava boa, suculenta. Num desses momentos, fiz um comentário com um dos meninos e ele me respondeu: "mano, vai comer uma picanha, depois você fala comigo, para com essas coisas de viadinho."

Enquanto isso, ao fundo, tocava uma moda de viola, exaltando a figura do homem do campo, e do lado de lá fora o churrasco tava comendo solto, homens com fivelas e calças apertadas, uma necessidade inexplicável de mostrar masculinidade.

Publicidade

Eu só conseguia pensar: "é impossível conversar sobre animais, veganismo, meio ambiente aqui neste lugar." Além disso, em termos de política, todos apoiavam o agronegócio, a caça, a pecuária e, logicamente, o ex-presidente.

As piadas machistas seguiram nos grupos de WhatsApp, me chamavam de ''universitário de esquerda'', de ''viadinho'', de ''menininha''. Esbanjando homofobia, sexismo e intolerância.

Embora tenha sido complicado, eu aprendi muito. Eu já fui como eles, já pensei de forma parecida, e até hoje lido com o machismo estrutural. Sempre enxerguei essas atitudes, principalmente nos moleques de quebrada, como falta de informação de modo geral, mas também tem aqueles que fazem conscientemente e são estúpidos mesmo.

Quando a gente lida com um assunto novo e com pessoas com ideias diferentes, o ideal é pesquisar, procurar entender o outro, as motivações e não sair julgando e apontando o dedo. É importante ter um certo cuidado para não agir de forma desrespeitosa, seja numa cachaçaria ou em qualquer outro lugar.

Publicidade

Pega a visão:

Tem coisas que fogem das nossas vontades, escolhas e gostos, sobretudo se você nasce em uma realidade periférica, sem pai e com a mãe desempregada. Esse trampo foi o que apareceu na época, eu precisava, e peguei. Eu recebia em média R$ 950,00, fora o café (caixinha de clientes) que às vezes eu ganhava.

Em termos de ser vegano ganhando menos de um salário mínimo com uma mãe desempregada não foi problema (isso na minha experiência individual).

Leonardo e Eduardo dos Santos são irmãos gêmeos, nascidos e criados na periferia de Campinas, interior de São Paulo. São midiativistas da Vegano Periférico, um movimento e coletivo que começou como uma conta do Instagram em outubro de 2017. Atuam pelos direitos humanos e direitos animais por meio da luta inclusiva e acessível, e nos seus canais de comunicação abordam temas como autonomia alimentar, reforma agrária, justiça social e meio ambiente.
Fique por dentro das principais notícias
Ativar notificações