Quando a pandemia da Covid-19 começou, em março de 2020, a Cia Trupe Liuds, de Perus, na zona noroeste de São Paulo, ainda reverberava a alegria de ter tido uma de suas peças selecionadas no FITI (Festival Internacional de Teatro de Inverno), em Moçambique, no sul da África.
A peça infantil, que permitiu que a companhia atravessasse o Oceano Atlântico para se apresentar no continente africano, em junho de 2019, conta a história de “Mjiba - a boneca guerreira”: uma boneca negra que é encontrada em uma caixa por dois palhaços carteiros, que passam a conduzir uma discussão lúdica sobre os problemas enfrentados pelas mulheres negras na sociedade.
“Passamos duas semanas em Moçambique e foi uma experiência muito intensa, enriquecedora e muito conflitante também”, diz Valmir Santana, 32, o Palhaço Torradinho, um dos sete integrantes da trupe.
“Pudemos trocar essa experiência com os nossos companheiros artistas aqui no território. Trouxemos o que chamamos de magia e uma consciência de como preservar a cultura afro-brasileira”, acrescenta.
Ao longo da pandemia, a Cia Trupe Liuds, que tem como sede a Comunidade Cultural Quilombaque, também em Perus, teve que migrar as apresentações para o online. Essa mudança fez com eles adotassem a responsabilidade de conscientizar as pessoas sobre o momento pandêmico por meio da arte circense.
“Fomos para a rua bater de porta em porta pelas periferias da cidade levando as mensagens dos palhaços carteiros da peça Mjiba, pedindo que as pessoas se protegessem, usassem máscara e álcool em gel – itens que distribuímos com as histórias e palhaçadas pelas quebradas de São Paulo”, lembra Santana.
Apesar da retomada presencial, os desafios da pandemia ainda não acabaram para os artistas da trupe. Clébio Ferreira, 37, o Palhaço Candango, comenta sobre a primeira apresentação pós-quarentena, realizada em frente ao CCJ (Centro Cultural da Juventude), na Vila Nova Cachoeirinha, zona norte da capital.
“Foi uma experiência louca porque temos uma interação [de proximidade] com o público e na hora não sabíamos se poderíamos interagir e o público também não. Ficou meio que uma barreira”, conta.
“A pandemia criou essa barreira de parecer que é televisão. Como ficamos muito no online, criou-se uma barreira real que tem que ser quebrada. A cada espetáculo temos tentado derrubá-la e nos aproximar do nosso público”, continua Ferreira.
Outro desafio da retomada apontado por ele está relacionado à performance física e textual da trupe. “Perdemos o preparo físico e, às vezes, o tempo da piada. Estamos retomando essa questão de preparação porque, para nós, o palhaço tem que ser muito dinâmico”, diz.
Com a retomada, o artista acredita que 2022 é um “ano que promete”. “O público está esperando, está a fim de ver, de jogar e de estar junto. O público está esperando arte, então vamos dar arte para ele”, afirma.
Do outro lado da cidade, no distrito de São Luís, na zona sul, o retorno presencial com o público também tem gerado boas expectativas nos integrantes do Circo de Québra. O grupo atua desde 2016, levando espetáculos, intervenções e oficinas circenses para vielas e escadões de diferentes periferias.
O trabalho é desenvolvido por meio de rede: além de integrantes que atuam na organização das apresentações e oficinas, o Circo de Québra também conta com a participação de artistas de outros coletivos e regiões em todos os espetáculos. Assim, as apresentações são sempre únicas.
Com a retomada, Wandré Gouveia, 31, produtor cultural e artista circense idealizador do projeto itinerante, afirma que as intervenções já estão atingindo a mesma quantidade de público que o Circo tinha quando a pandemia chegou.
“Tivemos um processo durante esses anos de formação de público, então, na verdade, o nosso público fiel aqui da viela já estava aguardando há um bom tempo pela nossa retomada”, conta.
Para Gouveia, isso também se dá porque a proposta do grupo já é conhecida. Em parceria com coletivos que já têm alguma atuação nas quebradas, o Circo de Québra busca entender como suas ações podem contribuir e somar com o trabalho que já é desenvolvido por outros grupos.
Sobre a volta, o artista diz que o coletivo está no processo de entender a questão do distanciamento e dos cuidados, tanto da exposição do público que está acompanhando, quanto dos artistas que estão atuando.
“É uma questão de engrenar novamente. Não é um processo muito duro porque era o que estávamos mais sentindo falta. Então foi um alívio poder voltar a fazer coisas presenciais”, relata.
Além de levar a arte circense para as periferias, quebrando barreiras ao se adaptar a esses espaços, o grupo promove ainda atividades com foco no meio ambiente, como hortas urbanas e jardins verticais.
O projeto mais recente foi o Parque de Québra, montado durante a pandemia na Viela matriz do projeto, no Jardim Novo Santo Amaro. A ação, segundo Gouveia, “trouxe alívio para as famílias e as crianças nesse período tão difícil para todos”.