Em cima de um banco de concreto, com um microfone na mão direita e rodeado por uma multidão, o MC Guarnieri lança a rima: “Ele é Orlando Morando, mas não está morando na favela”. O verso que ecoa pelo centro da cidade na noite desta terça-feira (22) não é direcionado ao MC Milhouse, seu oponente naquela etapa da Batalha da Matrix, que ocorre há nove anos na praça da Igreja da Matriz de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, mas tem como alvo o prefeito que vem aumentando a repressão contra cultura negra e periférica do município.
Desde do seu retorno em abril, depois de ter ficado dois anos sem ser realizada por conta da pandemia de Covid-19, a disputa de MCs, que reúne centenas de jovens todas as noites de terça-feira na área central da cidade, sofre com a intimidação das forças de segurança do município.
Antes mesmo que o equipamento de som chegue à praça para dar voz a manifestação cultural, viaturas da Guarda Municipal se posicionam dentro do espaço público, impedindo que boa parte da praça seja ocupada pelo público, deixando apenas uma parte lateral para que as rimas sejam entoadas.
“Não é de hoje que a Batalha da Matrix vem sendo perseguida pelo poder público. Desde 2016, quando a prefeitura ainda era do PT [na gestão Luiz Marinho], houve a primeira grande repressão, onde até bombas foram lançadas contra nós. A partir de 2017, essa repressão continuou. O próprio prefeito Orlando Morando [PSDB] já veio e aqui para mostrar para os seus eleitores que tomaria alguma providência contra nós”, diz Éder Alexandre, de 34 anos, um dos organizadores do evento.
Segundo ele, atualmente a repressão é menos violenta, porém mais intimidadora. Desde que voltou a ser realizado este ano, é comum que os frequentadores do evento sejam revistados e até os bares que ficam ao redor da praça recebem ordem para fechar suas portas e parar de vender seus produtos para quem está participando da manifestação cultural.
“É um tiro no pé isso o que a prefeitura faz. Ao invés de aproveitar o potencial cultural que essa juventude tem e vem mostrando a todo esse tempo, o poder público prefere reprimir uma manifestação como a Batalha da Matrix. Se fosse esperta, a prefeitura aproveitaria o potencial artístico desse espaço”, comenta o cientista social Felipe Oliveira Campos, que fez a sua dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo (USP) sobre a Batalha e que foi transformada em livro.
“De certa forma, eles alegam que nós estamos destruindo o espaço público. Mas a partir do momento que eles não nos ajudam dando nenhuma estrutura e impedem que os bares fiquem abertos, faz com que as pessoas não possam utilizar o banheiro dos comércios e acabam fazendo xixi na rua”, explica Éder.
R$ 15 mil de multa
Uma das formas mais explícitas de como ocorre a coação por parte do poder público contra a Batalha da Matrix foi uma multa aplicada contra Lucas do Vale, um dos organizadores do evento. Ele recebeu dois boletos de cobrança no valor de R$ 7.548,06 cada, com a alegação de que a disputa de rimas tinha excedido o limite de som permitido na cidade.
“Eles não apresentaram nenhum laudo e fizeram a medição de forma irregular. O certo é medir a partir do ponto onde foi feita a denúncia e não do lado da caixa de som, como eles fizeram. Do jeito que eles mediram, até uma conversa entre duas pessoas pode exceder esse limite”, comenta Éder Alexandre.
Um dos pioneiros do movimento hip hop no Brasil, o bailarino Nelson Triunfo esteve na Praça da Matriz para apoiar a manifestação que ocorreria minutos depois no local. Ele faz um paralelo com o tratamento que os pioneiros do gênero recebiam das forças policiais nos anos 1980, quando o rap ainda engatinhava em encontros no centro da capital paulista, na Estação São Bento do Metrô.
“Isso aqui me lembra a época em que nós éramos reprimidos pela ditadura militar. É um absurdo o que está acontecendo aqui. Esses jovens estão fazendo cultura. A prefeitura deveria fornecer o som para esses garotos, não aplicar multa de 15 mil reais e proibir que eles usem uma tomada”, diz Triunfo, se referindo a mais uma intervenção da prefeitura de São Bernardo do Campo, que não deixou que a organização do evento ligasse o equipamento de som em um ponto de energia da praça.
“A batalha é como se fosse um remédio”
Cassio Alves, de 33 anos, comparece à Batalha da Matrix desde sua primeira edição e diz que o encontro semanal se tornou uma tradição da cidade e um ponto de encontro da juventude periférica no centro do município. Para ele, a concentração de pessoas pobres e pretas fora dos seus bairros é o motivo para o incômodo do poder público com o evento.
“Estão tentando destruir porque a favela está aqui. Ao invés de roubar os boys ou pichar os muros da cidade, a molecada está aqui fazendo um som e mandando a rima. Isso aqui faz um bem pra gente. Melhora nossa semana. É como se fosse um remédio. Acabar com isso daqui é fascismo”, declara.
Para demonstrar a indignação com a coms as perseguições que estão sofrendo e a força que o movimento hip hop no município, os frequentadores da Batalha da Matrix fizeram uma manifestação que saiu de frente da Igreja da Matriz e percorreu ruas do centro da cidade até chegar à prefeitura, onde foram recepcionados por agentes da Guarda Municipal com escudos e capacetes.
Quem esteve em meio a passeata garante que participou de um momento histórico na cidade. “Começamos como um grupo de garotos que há quase 10 anos atrás só queria se encontrar para fazer rima e ver os amigos. Devo muito do que eu sou hoje ao rap e a Batalha da Matrix, que me fez entender mais sobre a vida e o próprio movimento. A gente tem a ideia de nos tornarmos uma produtora e viver do hip hop”, encerra Éder Alexandre.
Outro lado
A reportagem procurou a prefeitura de São Bernardo do Campo para entender as motivações por trás das multas, dos fechamentos de estabelecimentos e da proibição do uso da tomada. Por e-mail, a administração de Orlando Morando respondeu com a seguinte nota:
A Prefeitura de São Bernardo informa que a multa aplicada ao evento se deu pelo descumprimento da Lei Municipal nº 6.323/2013. A legislação veda a utilização de equipamentos de som, como forma de evitar transtornos aos moradores do entorno. A medição do nível de ruído seguiu a diretriz da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
A Administração reitera que a utilização de praças é livre a qualquer cidadão, mas a realização de eventos depende de autorização, conforme previsto em lei. A Prefeitura presta apoio à Batalha da Matrix, por meio da Guarda Civil Municipal (GCM), com intuito de evitar o consumo de bebidas alcoólicas por menores de idade e o uso de drogas, como ocorria no passado. A GCM mantém sua presença justamente visando esse controle, uma vez que materiais com apologia ao uso de maconha foram distribuídos no local. Não procede a informação de que a guarda atue para forçar o fechamento do comércio do entorno.
A administração reafirma seu interesse em dialogar, como já foi feito, com oferta de outros espaços públicos que não levem desconforto à vizinhança ou ao trânsito do entorno.