“Divindades beiçudas”: conheça livro pioneiro no preconceito contra o candomblé

Clássico de João do Rio, jornalista e escritor, é o melhor exemplo do pior jornalismo sobre religiões de matriz africana

21 jan 2025 - 09h32
Resumo
Autor homenageado na Feira Literária Internacional de Parati (Flip) de 2024, João do Rio despontou no jornalismo e na literatura na passagem do século 19 para o 20. Foi pioneiro ao reportar terreiros, mas com olhar extremamente preconceituoso.
Fanfarra Carioca apresenta um musical que revive festejos comandados por Hilária Batista de Almeida (1854-1933), a tia Ciata.
Fanfarra Carioca apresenta um musical que revive festejos comandados por Hilária Batista de Almeida (1854-1933), a tia Ciata.
Foto: Divulgação

Aclamado especialmente por quem não o leu, o livro As Religiões do Rio, publicado pelo primeira vez em 1904, reúne as reportagens de um ícone do jornalismo e da literatura, o preto e homossexual assumido João do Rio – que, hoje em dia, seria enquadrado nos crimes de racismo, homofobia, injúria e difamação.

As Religiões do Rio, tido como um clássico, reúne reportagens pioneiras sobre diversas religiões, como protestantes, espíritas, satanistas e até positivistas (sim, existia uma igreja positivista...). A maior reportagem é sobre os “feiticeiros”, os praticantes de cultos de origem africana.

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"Os mais malandros passam a existência deitados no sofá. As filhas-de-santo, prostitutas algumas, concorrem para lhes descansar a existência" – João do Rio

Um preconceito recorrente – associar exus a demônios – está escancarado no livro. E muitos outros. Com indisfarçável má vontade, João do Rio não compreende a mitologia africana, a hierarquia dos orixás, os rituais. Acusa os pais de santo de poligamia, as iniciadas de prostituição, os adeptos de iludidos. Fala em “divindades beiçudas”.

A foto clássica de João do Rio mostra o escritor e jornalista carioca como um homem branco, que ele não era.
Foto: Divulgação

Apesar das evidentes diferenças, escreve que o culto aos orixás é semelhante ao islamismo. “Acham-se todos relacionados pela língua, com costumes exteriores mais ou menos idênticos e vivendo da feitiçaria”.

"Confundem os santos católicos com os seus santos, e vivem a vida dupla, encontrando em cada pedra, em cada casco de tartaruga, em cada erva, uma alma e um espírito" – João do Rio

Tirando o berço do samba e sua madrinha

Para João do Rio, tornar-se filha de santo é a mesma coisa que “colocar-se sob o patrocínio de um fetiche qualquer”. Ao descrever o ritual, afirma que “a dança é simples, contínua e insistente. Horrendamente insistente”.

A casa de Tia Ciata, local hoje reverenciado como nascedouro do samba carioca, não passa, para João do Rio, de um antro de feitiçaria e outros pecados. Ciata nasceu em Salvador, em 1854, e chegou ao Rio de Janeiro aos 22 anos. Tornou-se uma espécie de primeira-dama das comunidades da Pequena África.

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Tia Ciata, uma liderança negra na Pequena África, é um dos alvos de João do Rio em sua reportagem preconceituosa.
Foto: Divulgação

A Pequena África seria reconhecida pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade, mas para João do Rio, sua moradora mais ilustre “finge de mãe de santo”. Fofoqueiro, destaca mexericos. “Ainda outro dia houve lá um escândalo dos diabos”, em uma festa de iemanjá organizada por Ciata, “uma das feiticeiras de embromação”.

"As iaô são as demoníacas e as grandes farsistas da raça preta”. São também “delirantes” e sua vida é “um tecido de fatos cruéis, anormais, inéditos, feitos de invisível, de sangue e de morte” – João do Rio

No final de reportagem, coloca tudo no mesmo saco. “Que fazem esses negros mais do que fizeram todas as religiões conhecidas?”, pergunta, com a arrogância hoje presente em discursos e ações extremistas.

Fonte: Visão do Corre
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